O
leão
A
menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está
preso, velho e doente, em gradil de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina
de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as
pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos
fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não
tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um
momento, que fossem lágrimas.
Chega-se
um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas
de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer a grama
a seus pés.
Um
de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.
–
Ele não tem dente?
–
Tem sim, não vê? O que não tem é força de morder.
Continua
o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho
de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da
derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De
repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora, leão come verde!
Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho e doeu.
O
leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de
dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé.
Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de
fordeco antigo.
Por
um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa
o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair
de lado e fechou os olhos para sempre.
Leia também:
"O sino de ouro" - Rubem Braga
"Poema em linha reta" - Álvaro de Campos
José Craveirinha - Poemas
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