Acorrentados
Quem coleciona selos para o filho do
amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar
que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro
de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma
carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri
das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois
de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou;
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os
lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco
familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários;
quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou
mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o
canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia
os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não
mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional
no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras,
garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas
para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe
construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos
troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira
o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma
perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério
os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz
ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da
pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do
cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte
acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
(Paulo Mendes Campos)
Leia também:
"Amor de menino" - Fabrício Carpinejar
"Os pensamentos do Lalau" - Stanislaw Ponte Preta
"Passagem das horas" - Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
Torquato Neto – Poemas
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