O Coronel e o Lobisomem
Em vão tentei retirar de mim tais quebrantos. Por
dentro do luar, de rédea perdida, viajei tempo sem conta. Ao dar acordo de
Ponciano, já o ventão da costa andava longe e um jeito de alma penada imperava
nos ermos. Nesse entrementes, tive a atenção chamada por uns pés de cuité, onde
um vulto parecia escondido. Freei no supetão, não fosse uma tocaia armada
contra a minha pessoa. Cocei as armas, pronto para limpar a estrada a fogo de
garrucha. Mas o luar pulou na frente e desbaratou o vulto da cuitezeira, que
não passava de um mal-entendido da noite. Aliviado, catuquei a mula de
sobre-leve. Não acusou roseta. Piquei de novo, e quem disse que ela arredava
casco da estrada? Orelha em pé como bicho em presença de perigo, a teimosa
fincou as patas no calhau. Mais uma vez risquei espora na barriga dela e de
novo a bichinha rejeitou as ordens. Conhecedor das manhas dos escuros, não quis
fazer prevalecer a vontade do coronel, embora tivesse poder para tanto. Deixei
de lado esse direito e procurei entrar em entendimento com a birrenta:
– Que faniquito é esse? Respeite a patente e deixe
de ficar sestrosa.
Foi quando, sem mais nem menos, deu entrada no meu
ouvido aquele assovio fininho, vindo não atinei de onde. Podia ser cobra em
vadiagem de luar. Se tal fosse, a mula andava recoberta de razão. Por isso, dei
prazo de espera para que a peçonha saísse no claro. Nisso, outro assobio passou
rentoso de minha barba, com tanta maldade que a mula estremeceu da anca ao
casco, ao tempo em que sobrevinha do mato um barulho de folha pisada. Inquiri
dentro do regulamento militar:
– Quem vem lá?
De resposta tive novo assobio. Num repente,
relembrei estar em noite de lobisomem – era sexta-feira. Tanto caçoei do povo
de Juca Azeredo que o assombrado tomou a peito tirar vingança de mim, como
avisou o Sinhozinho. Pois muito pesar levava eu não poder, em tal estado, dar
provimento ao caso dele. Sujeito de patente, militar em serviço de água benta,
carecia de consentimento para travar demanda com lobisomem ou outra qualquer
penitência dos pastos, mesmo que fosse uma visagenzinha de menino pagão. Sempre
fui cioso de lei e não ia em noite de batizado manchar, na briga de estrada,
galão e patente:
– Nunca!
A mulinha, a par de tamanha responsabilidade, que
mula sempre foi bicho de grande entendimento, largou os cascos na poeira. Para
a frente a montaria não andava, mas na direção do Sobradinho corria de vento em
popa. Já um estirão era andado quando, numa roça de mandioca, adveio aquele
figurão de cachorro, uma peça de vinte palmos de pelo e raiva. Na frente de
ostentação tão provida de ódio, a mulinha de Ponciano debandou sem minha
licença por terra de dormideira e cipó, onde imperava toda a raça de espinho,
caruru-de-sapo e roseta-de-frade.
O luar era tão limpo que não existia matinho desimportante
para as suas claridades – tudo vinha à tona, de quase aparecer raiz. Aprovei a
manobra da mula na certeza de que lobisomem algum arriscava sua pessoa em
tamanho carrascal. Enganado estava eu. Atrás, abrindo caminho e destorcendo
mato, vinha o vigancista do lobisomem. Roncava como porco cevado. Assim acuada,
a mulinha avivou carreira, mas tão desinfeliz que embaralhou a pata do coice
numas embiras-de-corda. Não tive mais governo de sela e rédea. Caí como sei
cair, em posição militar, pronto para repelir qualquer ofendimento. Digo, sem
alarde, que o lobisomem bem podia sair da demanda sem avaria ou agravo, caso
não fosse um saco de malquerença. Estando eu em retirada, pelo motivo já sabido
de ser portador de galão e patente, não cabia a mim entrar em arruaça
desguarnecido de licença superior. Disso não dei conta ao enfeitiçado, do que
resultou a perdição dele. Como disse, rolava eu no capim, pronto a dar ao caso
solução briosa, na hora em que o querelante apresentou aquela risada de pouco
caso e deboche:
– Quá-quá-quá...
Não precisou de mais nada para que o gênio dos
Azeredos e demais Furtados viesse de vela solta. Dei um pulo de cabrito e
preparado estava para a guerra do lobisomem. Por descargo de consciência, do
que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro:
– São Jorge, Santo Onofre, São José!
Em presença de tal apelação, mais brabento apareceu
a peste. Ciscava o chão de soltar terra e macega no longe de dez braças ou
mais. Era trabalho de gelar qualquer cristão que não levasse o nome de Ponciano
de Azeredo Furtado.
Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de
contaminar de fogo o verdal adjacente. Tanta chispa largava o penitente que um
caçador de paca, estando em distância de bom respeito, cuidou que o mato
estivesse ardendo. Já nessa altura eu tinha pegado a segurança de uma figueira
e lá de cima, no galho mais firme, aguardava a deliberação do lobisomem.
Garrucha engatilhada, só pedia que o assombrado desse franquia de tiro.
Sabidão, cheio de voltas e negaças, deu ele de executar macaquices que nunca
cuidei lobisomem pudesse fazer. Aquele par de brasas espiava aqui e lá na
esperança de que eu pensasse ser uma súcia deles e não uma pessoa sozinha. O
que o galhofista queria era que eu, coronel de ânimo desenfreado, fosse para o
barro denegrir a farda e deslustrar a patente. Sujeito especial em lobisomem
como eu não ia cair em armadilha de pouco pau. No alto da figueira estava, no alto
da figueira fiquei. Diante de tão firme deliberação, o vingativo mudou o rumo
da guerra. Caiu de dente no pé de pau, na parte mais afunilada, como se serrote
fosse:
– Raque-raque-raque.
Não conversei – pronto dois tiros levantaram asa da
minha garrucha. Foi o mesmo que espalhar arruaça no mato todo. Subiu asa de
tudo que era bicho da noite e uma sociedade de morcegos escureceu o luar. No
meio da algazarra, já de fugida, vi o lobisomem pulando coxo, de pernil
avariado, língua sobressaída na boca. Na primeira gota de sangue a maldição desencantava,
como é de lei e dos regulamentos dessa raça de penitentes. No raiar do dia, sujeito
que fosse visto de perna trespassada, ainda ferida verde, podia contar, era o lobisomem.
(José Cândido de Carvalho, in “O Coronel e o Lobisomem”)
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"Tormento não tem idade" - Moacyr ScliarMário de Sá-Carneiro - Poemas
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