Meu
reino por um pente
Filhos – diz o
poeta – melhor não tê-los.
Já o Professor Aníbal Machado me
confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter
explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los. A conclusão parece simples,
mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza
imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se
discute, fora de alcance do radar filosófico.
“Eu não sei por que, Paulo, mas
fazer filhos é o que há de mais importante.”
"Music lesson". Charles West Cope. |
Você vai se rir de mim ao saber que
comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel.
Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de
conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas
províncias de meu corpo. Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água
a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel,
minha cola… Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a
tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para
Minas Gerais, renunciar… Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio
que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença
uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences.
O que não suporto é a repetição
indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os
quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os
cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara.
Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os
tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes
que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México.
A princípio, pensou que eu estava
substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu
lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: “Lá em casa é a
mesma coisa”. Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois
para você, quatro para você – segundo o temperamento e a distração de cada um.
Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em
cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação
ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes
por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás
do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente
toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais
ordinário encontrável na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém usa;
neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos
presentes deseja fazer alguma objeção?” Estão todos de acordo.
A sinceridade do meu clã nesses
momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que,
afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas,
meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o
vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam.
Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa
malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois
de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e,
como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu
reino por um pente!”.
Eu não fui – diz o primeiro; – eu
não fui – diz o segundo; – eu não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja
especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo
negativamente. Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina.
Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a
quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me
mudar, a gente vai achar tudo. E sorrir um para o outro com uma nostalgia
imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
Leia também:
"A flor e a náusea" – Carlos Drummond de Andrade
"O mato" – Rubem Braga
Bocage – Poemas
"Cartas de amor" – Moacyr Scliar
Conheça as apostilas de literatura do blog Veredas da Língua. Clique em uma das imagens abaixo e saiba como adquiri-las.
ATENÇÃO: Além das apostilas, o aluno recebe também, GRATUITAMENTE, o programa em Powerpoint: 500 TEMAS DE REDAÇÃO
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário