As
duas éticas
AS DUAS ÉTICAS: a ética que brota da
contemplação das estrelas perfeitas, imutáveis e mortas, a que os filósofos dão
o nome de ética de princípios, e a ética que brota da contemplação dos jardins
imperfeitos e mutáveis, mas vivos -a que os filósofos dão o nome de ética
contextual.
Os jardineiros não olham para as estrelas.
Eles nada sabem sobre as estrelas que alguns dizem já ter visto por revelação
dos deuses. Como os homens comuns não veem essas estrelas, eles têm de
acreditar na palavra dos que dizem já as ter visto longe, muito longe...
Os jardineiros só acreditam no que
os seus olhos veem. Pensam a partir da experiência: pegam a terra com as mãos e
a cheiram...
"O jardineiro". 1890. Camile Pisarro. |
Vou aplicar a metáfora a uma
situação concreta. A mulher está com câncer em estado avançado. É certo que ela
morrerá. Ela suspeita disso e tem medo.
O médico vai visitá-la. Olhando, do
fundo do seu medo, no fundo dos olhos do médico ela pergunta: "Doutor,
será que eu escapo desta?"
Está configurada uma situação ética.
Que é que o médico vai dizer?
Se o médico for um adepto da ética
estelar de princípios, a resposta será simples. Ele não terá que decidir ou
escolher. O princípio é claro: dizer a verdade sempre. A enferma perguntou. A
resposta terá de ser a verdade. E ele, então, responderá: "Não, a senhora
não escapará desta. A senhora vai morrer..." Respondeu segundo um
princípio invariável para todas as situações.
A lealdade a um princípio o livra de
um pensamento perturbador: o que a verdade irá fazer com o corpo e a alma
daquela mulher? O princípio, sendo absoluto, não leva em consideração o
potencial destruidor da verdade.
Mas, se for um jardineiro, ele não
se lembrará de nenhum princípio. Ele só pensará nos olhos suplicantes daquela
mulher. Pensará que a sua palavra terá que produzir a bondade. E ele se
perguntará: "Que palavra eu posso dizer que, não sendo um engano -"A
senhora breve estará curada...'-, cuidará da mulher como se a palavra fosse um
colo que acolhe uma criança?" E ele dirá:
"Você me faz essa pergunta
porque você está com medo de morrer. Também tenho medo de morrer..." Aí,
então, os dois conversarão longamente -como se estivessem de mãos dadas ...-
sobre a morte que os dois haverão de enfrentar. Como sugeriu o apóstolo Paulo,
a verdade está subordinada à bondade.
Pela ética de princípios, o uso da
camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de fetos sem cérebro, o
divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não requerem decisões: os
princípios universais os proíbem.
Mas a ética contextual nos obriga a
fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma ação irá criar. O uso da camisinha
contribui para diminuir a incidência da Aids? As pesquisas com células-tronco
contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doenças? O aborto de um
feto sem cérebro contribuirá para diminuir a dor de uma mulher? O divórcio
contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar suas vidas afetivas? A
eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma pessoa da dor que não a
deixará?
Duas éticas. A única pergunta a se
fazer é: "Qual delas está mais a serviço do amor?"
(Rubem
Alves)
Leia também:
Wally Salomão – Poemas
"Cartas de amor" – Moacyr Scliar
"Meu reino por um pente" – Paulo Mendes Campos
"Tintim" – Luís Fernando Verissimo
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