A última vez
Se
já é difícil dar adeus quando não se ama, imagina quando se ama.
Não
é simples colocar um marcador de página numa história de amor e abandonar a
leitura.
Reconhecer
que jamais terminaremos aquele romance. Não haverá recompensa por aquilo que se
leu até ali. Ninguém nos contará o que aconteceu.
"The Long Goodbye". Daniel Del Orfano. |
Não
participaremos do final feliz: os filhos, a velhice lado a lado, a casa cheia
de netos. Não estaremos juntos na derradeira linha. É morrer sem ter morrido. É
desaparecer estando onipresente.
O
livro de sua imaginação ficará fechado para sempre. A relação terminou antes do
fim do amor. O leitor terminou antes da obra. Não descobriremos qual será o
desfecho.
Não
queira viver o dia de uma despedida com a consciência de que é uma despedida.
É
uma cirurgia sem anestesia. Será cortado, será remexido por dentro, será
costurado, sentindo cada pontada e rasgo, antecipando cada movimento com os
olhos abertos. A pele vai doer como um osso, a sensibilidade pedirá piedade, o
ouvido apanhará qualquer frase como uma possível sentença salvadora.
Melhor
que a despedida seja involuntária, desconhecida, desavisada. Melhor que seja
abrupta, de repente, improvisada.
Pois
se despedir é sofrer com tudo que lhe tornava feliz. É abrir os braços para a
mágoa como se viesse uma alegria em nossa direção.
É
um esforço para decorar o estranho momento em que abandonaremos uma vida tão
desejada.
O
nós é a primeira partilha – o plural perderá seu domínio. Voltará a chamar a
pessoa que ama pelo nome, como se não a conhecesse. Não mais de Meu Amor. Não
mais de Minha Paixão.
É
entrar pelo quarto pela última vez, e ter noção de que será a última vez.
É
olhar pela régua que mantém a janela aberta da cozinha pela última vez, e ter
noção de que será a última vez.
É
abrir o guarda-roupa pela última vez, reconhecer o estalo da divisória de
madeira, e ter noção de que será a última vez.
É
fechar o registro do chuveiro pingando pela última vez, e ter noção de que será
a última vez.
É
ajeitar as almofadas do sofá pela última vez, e ter noção de que será a última
vez.
É
ouvir a respiração perto pela última vez, copiosa, irrefreável, e ter noção de
que será a última vez.
É
abraçar pela última vez e não soltar porque é realmente a última vez.
É
beijar pela última vez e soluçar porque enfim chegou a inacreditável última
vez.
É
uma coleção de instantes definitivos. Preciosos. Sábios.
Despedir-se
é guardar. Guardar é cuidar. Cuidar é nunca deixar de amar.
Quem
faz questão de se despedir, quem faz questão de inventar uma despedida, é quem
ainda ama. Ama muito. Ama demais. Ama loucamente.
(Fabrício Carpinejar, 16.11.2014, crônica publicada no jornal Zero Hora)
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