A complicada arte de ver
Ela entrou,
deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em
silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus
prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os
pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para
fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem
surpresas. Mas, cortada a cebola, eu
olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola.
Aqueles anéis
perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar
vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de
objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é
que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que
vejo me causa espanto”.
Ela se calou,
esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá
retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à Cebola” e lhe
disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o
que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘Rosa de
água com escamas de cristal’. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de
poeta… Os poetas ensinam a ver”.
(Rubem Alves)
Conheça as apostilas do blog Veredas da Língua. Clique em uma das imagens abaixo e saiba como adquiri-las.
Nenhum comentário:
Postar um comentário