Prova de Língua e Literatura em Língua Portuguesa –
Cásper Líbero – 2013
1. Sobre Lembrança do mundo antigo, apresentado a
seguir, que integra Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, é
correto afirmar que o poema:
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não
havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor,
os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no
jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
a. opõe a um mundo injusto e brutal – que se cobria
de sangue, quando o poeta o concebeu – a tranquilidade, os atos simples da vida
que parecem mitológicos, fábulas de um passado extinto.
b. integra a fase surrealista do poeta, na qual ele
elabora uma síntese de elementos quotidianos tratados como fantásticos e
descreve cenas de absoluta suprarrealidade.
c. é um retrato fraternal e solidário de um tipo de
experiência social vivida largamente na década de 1940, quando o poeta o
concebeu. Experiência essa que desconhece a tristeza e abraça o mais veemente
lirismo, calcado na experimentação linguística.
d. retrata o mundo caduco que se anunciou com a
deflagração da Segunda Guerra Mundial, mas o poeta entusiasma-se com uma nova
ordem social que deixa de ser imaginária e se transforma em realidade palpável.
e. registra fotograficamente o cotidiano da década
de 1930 – época em Sentimento do mundo foi publicado –, o terra-a-terra mais
elementar, levando a fotografia a assumir elevações de símbolo.
2. Assinale a opção que caracteriza corretamente
Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade:
a. Prevalecem no livro longas e densas descrições
sem comentários de um mundo absurdo e sem sentido, como se os poemas fossem
espelhos da vida circunstante.
b. O poeta troca o registro meramente descritivo
pela acentuação do humor, presente em tantos poemas. Neles, a “vida besta” se
dilui como algo exterior para interiorizar-se, fazer-se estado de espírito.
c. Há no livro um misto de condenação e de
esperança: condenação do mundo errado, esperança de um mundo certo, cheio de
beleza e de justiça. O mundo caduco é enterrado em numerosos poemas, e
entrevê-se, utopicamente, a vida futura.
d. É um livro de suavização: embora ainda se irrite
vez por outra, ou ressuscite o complexo de culpa, o poeta se entrega ao amor
crepuscular, pacifica-se dos velhos ressentimentos e declara que o espetáculo
do mundo pede para ser visto.
e. Mudando os próprios rumos, o poeta recrimina-se
diante dos morticínios, da guerra, da trucidação coletiva e por não ter
escutado “voz de gente”, isto é, por não ter participado dos problemas de seus
semelhantes.
3. Sobre Til, de José de Alencar, é correto afirmar
que:
a. Alencar acentua um perfil feminino esboçado sob
a visão romântica, e mesmo romanesca, do comportamento afetivo e social da
mulher. São passíveis e merecedores de análise, em primeiro plano, a presença
da mulher numa sociedade em mudanças, marcada pela ascensão da classe burguesa
de comerciantes e banqueiros enriquecidos, honesta ou inescrupulosamente, ao
lado da classe aristocratizada ligada à economia rural, tanto uma quanto a outra
à procura de posições de relevo na vida pública.
b. o romance se apresenta, desde as suas primeiras
páginas, sob a pressão pungente da nostalgia, do fatalismo, da resignação. Seu
argumento depurado ou reduzido ao essencial flui sobre inspirações líricas,
também envolvendo o épico e o histórico. O herói e a heroína passam a traduzir
a significação mais profunda da sentimentalidade e do destino de um povo mestiço
– aquele que habitará a pátria do autor.
c. o romance, escrito em linguagem marcada por
certa objetividade informativa, quebra a monotonia romântica pelos apostos
caracterizadores das qualidades e virtudes das coisas descritas. Dois são os
interlocutores: o homem do interior fixado na terra, conhecedor dela e de suas
possibilidades, e o homem da cidade, portador da curiosidade de recém-chegado que
comenta, direta ou indiretamente, o procedimento do homem do interior.
d. Alencar produz uma espécie de saga do
desbravamento do interior paulista e da fixação do homem na terra, como se
repetisse a aventura histórica da “penetração” sertão adentro, ainda sob a
sedução do Eldorado. As personagens, verdadeiras sucessoras dos primitivos desbravadores,
respiram uma atmosfera épica, mas não abrem mão das relações românticas pautadas
pelas aparências de pudor e severidade de costumes da sociedade.
e. Alencar amplia o cenário da representação do
Brasil, não dispensando o lendário e o mítico, embora seu objetivo fundamental
seja dimensionar o homem e a paisagem interiorana, de maneira abrangente e
contrastante. O meio físico no romance é cenário para o grande impulso da vida
e da ação de heróis portadores de gestos cavalheirescos, movidos pelo destemor,
pelas generosidades e pelo amor não raro contido, marcado pela renúncia, pela abnegação.
4. Assinale a opção que apresenta corretamente a
análise crítica do romance Til, de José de Alencar:
a. “Dentro do quadro global do regionalismo
antemodernista é nele que se reconhece imediatamente um valor que transcende a
categoria em que a história literária sói fixá-lo. É o artista enquanto homem
que tem algo de si a transmitir, ainda quando pareça fazer apenas documentário
de uma dada situação cultural.” (Alfredo Bosi).
b. “No sertão, a literatura provém dele mesmo, e a
que aí encontrou o autor classificou de ‘literatura pura, bela, verdadeira,
real’, quer dizer, sem as deformações do racional e o prejuízo do valor
primeiro da palavra. No perfil que traçaria do sertanejo, ele vê um captador da
poesia que emana em torno deste improvisador, cuja criação é logo absorvida
pela memória coletiva que assim a retransmite.” (José Aderaldo Castello).
c. “O cunho de novidade que lhe registraram os
contemporâneos provém do realismo e certa graça com que fixou os costumes
sertanejos, da descrição e, alguma vez, quase explicação dos cenários da
história, da leveza e naturalidade dos diálogos espontâneos e vivos que pontuam
a narrativa, alguns deles suficientes à caracterização das personagens, do
registro de brasileirismos peculiares à região ou de particularidades do falar
local, e, finalmente, à maneira natural e simples com que movimentou
personagens e fatos do romance.” (Afrânio Coutinho).
d. “O romance desenvolve o princípio de que a vida
dos homens é uma história concebida por Deus. A trama da escrita divina
pressupõe contínua luta entre forças adversas, representadas pelos ímpetos da
maldade e da ternura. Sendo uma alegoria metafísica, o romance possui dois
aspectos distintos e complementares: por um lado, será uma estória de aventura
e ódio, cuja origem se concentra num caso de violência sexual; por outro, será
a fábula da conversão da filha do estupro em agente de forças positivas da
natureza.” (Ivan Teixeira).
e. “Os seus livros começam por uma situação de
equilíbrio e bonança, definida principalmente pela descrição eufórica da paisagem
em que se vai desenrolar a ação; a partir daí, procura surpreender no
personagem o nascimento da paixão, cujo percurso e estouro descreverá, mostrando
que a euforia inicial é como a placidez aparente do sertão e do sertanejo.” (Antonio
Candido).
5. Sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, é correto afirmar que:
a. o livro explora uma estrutura revolucionária na
qual estão presentes a imaginação sem fim, o telegrafismo das rupturas
sintáticas, o simultaneísmo, a sincronia, as ordens do inconsciente e os
neologismos copiosos. São capítulos-instantes, capítulos-relâmpagos,
capítulos-sensações que propõem uma colagem rápida de signos, sob
processos diretos, sem “comparações de apoio”.
b. a narrativa explora uma tensão geradora que não
se concentra tanto no eu-narrador quanto nas notações irônicas do meio
provinciano. Sente-se um escritor ainda ocupado na formalização da própria
memória, tratada por um tipo de distanciamento que vai desaguar no romance de
costumes.
c. o autor emprega o recurso do distanciamento,
experimentando também outras técnicas que mostram como as possibilidades narrativas podem
levar à compreensão do mundo. O livro apresenta uma estrutura informal e
aberta, tecida de lembranças casuais, fatos diversos e cortes digressivos entre
banais e críticos da personagem-autor, que não transcende nunca a filosofia do
bom senso burguês.
d. na prosa narrativa de Machado de Assis, o que
parece apenas espontâneo e instintivo é, no fundo, consciente e, não raro,
polêmico. A palavra, para Machado, serve de anteparo entre o homem, as coisas e
os fatos. As ocorrências da vida são narradas com uma animação tão simples e
discreta que as frases jamais brilham por si mesmas, isoladas e insólitas, mas deixam
transparecer naturalmente a paisagem, os objetos e as figuras humanas.
e. o romance é concebido como sintoma de uma crise
de amplo espectro: crise da personagem-ego, cujas contradições já não se
resolvem no casulo intimista, mas na procura consciente do supraindividual;
crise da fala narrativa, afetada agora por um estilo ensaístico, indagador; crise
da velha função documental da prosa romanesca.
6. Sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, é correto afirmar que:
a. embora lance o leitor ao desafio, genuinamente
romanesco, do confronto de ideias, não se pode classificar a obra como um
“romance filosófico” ou “romance de ideias”, pois nela sobressaem as peripécias
narrativas.
b. o escritor propõe um singular cruzamento da
tradição do romance humorístico europeu – Laurence Sterne, Miguel de Cervantes,
Denis Diderot, Almeida Garrett... – com a problematização da existência ou da
condição humana.
c. trata-se de um “romance de costumes”, decerto,
mas costumes sempre inseparáveis de situações particulares; ou “romance moral”,
mas de uma moralidade desconjuntada pelo humor, ou seja, sem conteúdo
generalizável.
d. Machado lançou mão de modelos literários
anacrônicos e os recuperou em uma época de crença férrea no progresso e na
ciência, tornando tais modelos, entretanto, incompatíveis com o exame –
impiedoso e retrógrado – da vida, da história e da sociedade humana.
e. trata-se do último romance da chamada fase
romântica do escritor. Fase, aliás, que, por muito tempo, constituiu um emblema
de sua prosa romanesca, ou de seu estilo, ou de seu humor.
7. Sobre O cortiço, de Aluísio Azevedo, é correto
afirmar que:
a. o autor não abandona a análise dos temperamentos
individuais, mas prefere acompanhar o mecanismo de fusão no ambiente coletivo,
que conduz à perda da singularidade dos seres, mutuamente entrelaçados pela
vivência conjunta. Seres que integram um todo unificado, um organismo social
devorador, pulsante, no qual as leis da natureza imperam.
b. a redução das criaturas ao nível animal é
compatível com o código naturalista da despersonalização. Entretanto, a
natureza humana – em vez de soar como uma selva onde os fortes comem os fracos,
explicando toda sorte de vilanias e torpezas – é exaltada por meio de uma
idealização mal disfarçada.
c. na teia da sociedade apresentada pelo romance,
tudo se prende ao prestígio da riqueza, que de fora vem precisar os contornos
das diferenças individuais; na trama da vida afetiva, as matrizes dos gestos e
das palavras são a agressividade e a libido.
d. o esquema romanesco da obra está fundado na
memória dos episódios mais cruéis da vida no cortiço, cobrindo de melancolia e
amargura o perfil dos moradores e fazendo as personagens femininas mergulharem
em uma atmosfera de ressentimento e desilusão.
e. o autor montou um enredo centrado em pessoas,
diluindo o máximo que pôde as sequências de descrições muito precisas, nas
quais cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem do cortiço a
personagem mais convincente do romance naturalista brasileiro. Logo, é das
personagens que deriva o quadro social.
8. Sobre o naturalismo brasileiro, escola literária
a que se filia O cortiço, de Aluísio Azevedo, é correto afirmar que:
a. a obsessão do naturalismo pelo novo a qualquer
preço é contraponto de um discurso repleto de clichês. A poética da novidade
deságua no efeito retórico-psicológico e na exploração do bizarro.
b. o determinismo reflete-se na perspectiva em que
se movem os narradores ao trabalhar suas
personagens. A pretensa neutralidade não chega a
ocultar o fato de que o foco narrativo carrega sempre de tons sombrios o
destino das suas criaturas.
c. a literatura que se escreveu sob o signo do
naturalismo representou, além de um conjunto de experiências de linguagem, uma
crítica global às estruturas mentais das velhas gerações e um esforço de
penetrar mais fundo na realidade brasileira.
d. o naturalismo representou um sintoma da crise do
liberalismo jurídico abstrato, da sua incapacidade de planificar o progresso de
um povo; e significou um passo adiante na construção de uma sociologia do povo
brasileiro.
e. a natureza naturalista é expressiva. Ela
significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real
impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da
alma: o sonho, a imaginação.
9. Assinale a opção cujo conteúdo é incoerente com
o romance Leite derramado, de Chico Buarque:
a. O narrador é um homem de cem anos, internado à
força num hospital infecto. Entre gritos, vizinhos de leito entubados e baratas
andando nas paredes, ele recorda – a 80 anos de distância – o breve casamento
em que foi feliz e traído (em sua opinião). De tempos em tempos a boa lembrança
ainda é capaz de transformá-lo no “maior homem do mundo”.
b. Quanto mais rememora, mais Eulálio se afunda em
repetições: “São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de
lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora”. Nas
páginas finais, ainda um menino de calças curtas, ele é levado pela mãe para se
despedir do tetravô, que agoniza em um hospital. Um homem de rosto pastoso e
memória degradada, que pode ser ele mesmo.
c. O núcleo romanesco da intriga – seu elemento de
sensação – é o desaparecimento inexplicável de Matilde. Depois de se perguntar
se ela se foi com o engenheiro francês, fugiu aos ciúmes do marido, caiu na
vida ou pegou uma doença e quis morrer fora da vista dos seus, o narrador
revela que ela morreu num acidente de carro, acompanhada de um homem. Assim,
essa explicação é adotada pelo próprio marido, pela sogra, pela mãe adotiva,
pela filha, pelas colegas desta, pelo pároco da Candelária e pela voz anônima
da cidade.
d. A fala desarticulada do ancião, ao mesmo tempo
em que preenche uma função de verossimilhança, cria dúvidas e suspenses que
prendem o leitor. O discurso da personagem parece espontâneo, mas o escritor
explora as associações livres, as falsidades e os não-ditos, de modo que o
leitor pode ler nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem
não consegue enfrentar.
e. A narrativa do centenário Eulálio vem borrada
pelas deformações próprias da memória. E também pelos estragos que os sonhos
nela produzem. “Dia desses fui buscar meus pais no parque dos brinquedos,
porque no sonho eles eram meus filhos”, vacila. Do mesmo modo, a literatura não
passa de um tapete estendido sobre um alçapão. Rombos, remendos, rasgões expõem
uma verdade que se esfarela.
10. Sobre Leite derramado, de Chico Buarque, é
correto afirmar que:
a. o romance retoma a verve naturalista de O
cortiço, de Aluísio Azevedo, ao explorar a ideia de que o ciúme e o amor não se
esgotam em si mesmos e estão atrelados a questões de raça e de etnia. Entre várias irmãs de tez clara, Matilde
é a única de pele escura, para desgosto da sogra, que, entretanto, tem um irmão
“beiçudo”. Mais adiante se saberá que a moça é filha adotiva, fruto de uma escapadela baiana do pai.
b. o romance retoma a matéria romântica presente em
Til, de José de Alencar, e a ultrapassa pelo viés do realismo, ao denunciar
como uma relação desigual, na qual nome de família, dinheiro e preconceito de
cor e classe se articulam com desejo e ciúme e formam um padrão consistente, que
vira cacoete. Seus desdobramentos mais reveladores ocorrem no hospital, onde o
patriarca centenário, agora já sem tostão, faz a corte a praticamente todas as
enfermeiras de turno, às quais promete casamento, roupas finas, nome ilustre,
palacete e baixelas, desde que se dediquem só a ele.
c. o romance retoma a tradição da saga familiar
marcada pela decadência, gênero consagrado no romance ocidental moderno de que
fez uso José de Alencar em Til. Entretanto, a ordem lógica e cronológica
habitual da saga é embaralhada, por se tratar de uma memória desfalecente;
repetitiva, mas contraditória; obsessiva, mas fragmentada.
d. o romance estabelece um franco diálogo com
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, não somente ao apresentar
um narrador em primeira pessoa que destila mediocridade e preconceitos
oligárquicos como também ao explorar a desproporção entre a intensidade da vida
amorosa do protagonista e a irrelevância de sua vida espiritual.
e. percorre todo o texto a paixão mal vivida e mal
compreendida do narrador por uma mulher, por meio de um viés determinista, tal
como ocorre em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Os
múltiplos traços de Matilde, seu “olhar em pingue-pongue”, suas corridas a
cavalo ou na praia, suas danças, seus vestidos espalhafatosos, ao mesmo tempo em
que determinam a paixão do marido e impregnam indelevelmente sua lembrança, ocasionam
a infelicidade de ambos.
11. Assinale a opção cujo conteúdo é incoerente com
O fio das missangas, de Mia Couto:
a. Embora sejam breves, os contos – cada qual
composto como uma missanga – exploram densamente um conjunto de paixões humanas
das mais universais: amores desfeitos, traições, vinganças, suicídios, loucura,
incesto...
b. Algumas narrativas são marcadas por certa
atmosfera de realismo fantástico, que remete às lendas populares de Moçambique.
Em “Peixe para Eulália”, por exemplo, há barcos que remam no ar e olhos que
saltam de suas órbitas.
c. Neologismos como “vizinho anoitrevido” e “saia
almarrotada” revelam, para além da mera experimentação formalista, caminhos
entre a oralidade do sudoeste pobre da África e a liberdade poética.
d. A presença de metáforas sobre o ato de narrar
aparece não somente em “A infinita fiandeira” (em que uma aranha tece teias
“inúteis”, não para enredar presas, mas por pura arte) como também em “O menino
que escrevia versos”, em que um garoto é levado ao médico por gostar bastante
de escrever – atividade considerada muito estranha.
e. A maioria dos contos explora com fina
sensibilidade o universo infantil, dando voz e tessitura à alma de crianças
condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, meninos
e meninas são aqui equiparados ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida,
ora, justamente, a um fio de missangas.
12. A personagem-narradora de O cesto, que integra
O fio das missangas, de Mia Couto, era desprezada pelo marido. Assinale a opção
em que a passagem do texto NÃO caracteriza o estado de submissão e passividade
vivido por ela:
a. “Hoje será como todos os dias: lhe falarei,
junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou.”
b. “Onde vivo não é na sombra. É por detrás do sol,
onde toda a luz há muito se pôs.”
c. “Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida.
Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.”
d. “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar
o cesto da visita.”
e. “Como a pedra, que não tem espera nem é
esperada, fiquei sem idade.”
Leia o texto a seguir e responda às questões de 23
a 28.
Jeitinho e jeitão: uma tentativa de interpretação
do caráter brasileiro
Nascido
inicialmente das contradições entre uma ordem liberal formal e uma realidade escravista,
o jeitinho transformou-se em código geral de sociabilidade.
Recordo
um caso pessoal, passado há muito tempo. Eu trabalhava com Celso Furtado (rigorosamente
antijeitinho), que recebia um diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento,
por sinal um conterrâneo seu. Este, vendo-me por perto, e julgando que eu não
era parte da conversa, pediu-me água. Pediu a primeira, a segunda e a terceira
vez. Fui obrigado a dizer-lhe que não confundisse gentileza com servilismo, e
que da próxima vez ele mesmo se servisse. Não ocorria àquele senhor que alguém
que não fosse da sua grei pudesse tomar parte de uma conversa com altos
representantes da banca interamericana. A origem do jeitinho, assim como a da
cordialidade teorizada por Sérgio Buarque, se explica pela incompletude das relações
mercantis capitalistas. Parece sempre que as pessoas estão “sobrando”. Elas são
como que resquícios de relações não mercantis, não cabem no universo da
civilidade. E às pessoas que sobram pode ser pedida qualquer coisa, já que é
obrigação do dominado servir ao dominante.
Qualquer
reunião brasileira está cheia de batidinhas nas costas na hora do cumprimento, impondo
logo de saída uma intimidade que é intimatória e intimidatória. Um dos cumprimentos
mais característicos de Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, é bater com as costas
da mão na barriga dos interlocutores. Mesmo em encontros formais, o primeiro
gesto de Lula ao se aproximar de qualquer pessoa é tocar-lhe a barriga.
A
matriz desses gestos encontra-se evidentemente no longo período escravagista.
Nele, o corpo dos negros era propriedade, podia ser tocado e usado. O
surpreendente é que esses gestos e costumes tenham persistido ao longo de 100
anos de vigência de um capitalismo pleno.
O
escravismo e a escravidão não explicam inteiramente a “longa duração” da
informalidade generalizada e dos hábitos que a acompanham. Os Estados Unidos
tiveram um sistema escravista que chegou até a organizar fazendas de criação de
negros. A ruptura com o escravismo custou à nação norte-americana uma
guerra civil que deixou marcas até hoje. Mas o jeitinho não foi o expediente
que usaram para superar os problemas colocados pelo capitalismo que avança.
Aqui,
o jeitinho das classes dominantes se impôs na abolição da escravatura. Primeiro
veio a Lei do Ventre Livre: garotos e garotas negros eram libertados em meio à
escravidão. Mas como inexistia a perspectiva de terem terra, emprego ou
salário, a libertação não lhes servia para quase nada.
Depois
veio a Lei dos Sexagenários. Aos 60 anos, os negros que ainda estivessem vivos eram libertados. Ora, já se sabia que a vida média
de um escravo não alcançava os 40 anos. Como mostrou Luiz Felipe de Alencastro
em O Tratado dos Viventes, depois de décadas de labuta no eito, o consumo do
trabalho pelo capital não era uma metáfora: o negro era um molambo de gente, e
não um homem livre, mesmo quando libertado pela Lei dos Sexagenários.
O
que parecia cautela e previsão era, na verdade, o jeitinho (e o jeitão) em
movimento.
Gradualmente,
até a chamada Lei Áurea, a escravidão persistiu. Isso criou uma superpopulação
trabalhadora que o sistema produtivo não tinha como incorporar. Com a industrialização,
tão sonhada pelos modernos, o problema se agravou. Tendo que copiar uma
industrialização de matriz exógena, que tende sempre à economia do trabalho, os
excedentes populacionais cresceram exponencialmente.
Assim,
o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É
ele que regula a taxa de salários, e não as normas trabalhistas fundadas por
Vargas. A partir daí todas as burlas são permitidas e estimuladas. A pergunta
que um candidato a emprego mais ouve é: com carteira ou sem carteira? O
funcionário com carteira resulta em descontos para a Previdência. Ou, se o
salário for um pouquinho melhor, até para o Imposto de Renda. A resposta do candidato ao emprego é óbvia: sem
carteira.
Quando
o trabalhador ou trabalhadora que têm consciência dos seus direitos recusam o emprego
sem carteira, às vezes, escutam “malandro, não quer trabalhar”. Em qualquer
setor, em qualquer atividade, o jeitinho se impõe. O executivo de terno
italiano de grife, o apresentador da televisão e a atriz de um musical não são
assalariados. São pessoas jurídicas, PJs, unicamente para que empresas paguem
menos impostos. Advogados, dentistas e prestadores de serviços oferecem seus
préstimos com ou sem recibo, e esse último é mais barato. Bancários,
telefonistas, vendedores e outras tantas categorias viram sua profissão periclitar:
eles são agora atendentes de call centers, terceirizados por grandes empresas.
O
jeitinho é a regra não escrita, sem exigência legal, mas seguida ao pé da letra
nas relações micro e macrossociais. Está tão estabelecido, é tão natural que
estranhá-lo (hoje menos do que ontem, reconheça-se) pode ser entendido como
pedantismo, arrogância ou ignorância: “Nego metido a besta”, é a sentença. A
não resolução da questão do trabalho, o seu estatuto social, é no fundo a
matriz do jeitinho. Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso
brasileiro.
(Francisco de Oliveira, revista piauí n. 73,
outubro 2012, excerto).
23. Quanto ao texto, trata-se de:
a. um artigo de viés sociológico que aborda um
fenômeno reproduzido sistemicamente nas relações sociais e que repercute nas
instituições, normas, leis e valores brasileiros.
b. uma crônica satírica por meio da qual o autor
explica a natureza do fenômeno do jeitinho brasileiro, desde o período
escravista até o governo do presidente Lula.
c. um texto memorialístico, construído em torno de
uma singular ocorrência lembrada pelo autor, a partir da qual é apresentada uma
visão crítica da sociedade brasileira.
d. uma crônica leve e bem-humorada que apresenta
algumas razões de ser do jeitinho brasileiro, sem condenar ou reprovar a
prática de antemão.
e. um artigo de cunho político que aborda o
jeitinho como um problema a ser combatido não somente nas relações sociais no
Brasil, mas, sobretudo, na economia do País.
24. Assinale a opção que identifica corretamente o
argumento central do texto:
a. O jeitinho brasileiro nasceu durante a
escravidão, quando o corpo dos negros era propriedade dos senhores e podia ser
tocado e usado, dando origem a uma série de gestos e costumes que persistiram
ao longo do século XX, no qual o capitalismo brasileiro se estabeleceu.
b. O trabalho informal tornou-se estrutural no
capitalismo brasileiro, regulando a taxa de salários e desrespeitando as normas
trabalhistas criadas por Getúlio Vargas. A origem desse processo remonta ao fim
da escravidão, quando burlar as normas passou a ser permitido e estimulado.
c. As regras não escritas do jeitinho brasileiro
são seguidas de maneira tão rigorosa pela sociedade brasileira que todo aquele
que se recusa a praticá-lo acaba sendo tachado de pedante, arrogante ou
ignorante.
d. Com a modernização da sociedade brasileira, a
industrialização, de matriz exógena, privilegiou a economia do trabalho,
levando os excedentes populacionais a um crescimento desordenado que lhes
causou a falta de emprego formal.
e. O jeitinho – cuja origem remonta às contradições
entre uma ordem liberal formal e uma realidade escravista e pode ser explicada
pela incompletude das relações mercantis capitalistas – transformou-se em
código geral das relações sociais no Brasil.
25. Assinale a opção em cuja frase a palavra
“caráter” tem o mesmo sentido daquele empregado no título do texto:
a. Aquele homem tem um caráter nobre.
b. Homens e mulheres bailaram o minueto vestidos a
caráter.
c. O autor se aventura pelos caminhos das raízes do
caráter nacional.
d. Esta criança tem um caráter péssimo: só vive choramingando.
e. A obra tem caráter puramente científico.
26. Assinale a opção que apresenta,
respectivamente, o significado das palavras “grei”, “exógena” e “periclitar”,
conforme elas são empregadas no texto:
a. partido - estranha - ser ameaçada.
b. categoria - exterior - correr perigo.
c. laia - interior - oferecer risco.
d. distinção - superficial - oscilar.
e. espécie - norte-americana - desaparecer.
27. Assinale a opção que caracteriza corretamente a
regra de concordância nominal empregada em “garotos e garotas negros”:
a. Quando um só adjetivo qualifica mais de um
substantivo, vindo posposto a eles, concorda com o elemento mais próximo.
b. Quando o adjetivo vem posposto aos substantivos
e funciona como predicativo, vai para o plural.
c. Quando o adjetivo vem anteposto aos
substantivos, concorda, por norma, com o elemento mais próximo.
d. Quando um só adjetivo qualifica mais de um
substantivo, vindo posposto a eles, vai para o plural, dando prioridade ao
masculino.
e. Quando o adjetivo anteposto for um predicativo
(do sujeito ou do objeto), poderá concordar com o substantivo mais próximo ou
ir para o plural.
28. Em “Quando o trabalhador ou trabalhadora (...)
recusam o emprego sem carteira...”, o verbo “recusar” não estaria flexionado no
plural se a conjunção “ou” criasse uma relação de:
a. alternância b. retificação c. explicação d.
ênfase e. explicação
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Período Composto por Coordenação
ORAÇÕES SUBORDINADAS ADVERBIAIS
Regência verbal II
Processos de Formação de Palavras I - Derivação
Orações Subordinadas Adverbiais Reduzidas
Orações Subordinadas Substantivas
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