Macacos me mordam
Morador
de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há
tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu,
residente em Manaus:
“Obsequio providenciar remessa
1 ou 2 macacos”.
Necessitava ele de fazer
algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade.
Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:
Não entendeu bem: o amigo lhe
arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só
foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe:
– Professor, chegou sua
encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem
especial.
E acrescentou:
– É macaco que não acaba mais!
Ficou aterrado: o telégrafo
errara ao transmitir “1 ou 2 macacos”, transmitira “1002 macacos”! E na
estação, para começar, nada menos que seiscentos macacos engaiolados aguardavam
desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:
“Pelo amor Santa Maria Virgem
suspenda remessa restante”.
Ia para a estação, mas a
população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali,
curiosa, entusiasmada, apreensiva:
– O que será que o professor
pretende com tanto macaco?
E a macacada, impaciente e
faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação,
divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de
aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. A noite,
porém, o agente da estação veio desentocá-la:
– Professor, pelo amor de
Deus, vem dar um jeito naquilo.
O professor pediu tempo para
pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:
– Professor, nós todos temos
muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não
der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa.
– Para minha casa? Você está
maluco?
O impasse prolongou-se ao
longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os
ditos espirituosos circulavam:
– Macacos me mordam!
– Macaco, olha o teu rabo.
À noite, como o professor não
se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas gradas do lugar: o prefeito,
o delegado, o juiz.
– Mandar de volta por conta da
prefeitura?
– A prefeitura não tem
dinheiro para gastar com macacos.
– O professor muito menos.
– Já estão famintos, não sei o
que fazer.
– Matar? Mas isso seria uma
carnificina!
– Nada disso – ponderou o
delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato…
Ao fim do segundo dia, o
agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para
o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar
os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os
diques do mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os
macacos. E os macacos foram soltos! E o mar do Norte, alegre e sinistro, saltou
para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes
abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a
gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em
pânico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se
despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a
camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar
ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o
braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada. A
partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao
pano verde um macaco e fugiu com a bola 7. Ai de quem descascasse
preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído
não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não
restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o
célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite
passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a
praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas
esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
No dia seguinte a situação
perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os
primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo,
apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa
naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.
Depois, com o correr dos dias
e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados
implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos
ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou
outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com
bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante
muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O
professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências. Caíra
doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos
insistissem em visitá-la pela janela.
Vai um dia, a cidade já em
paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus:
“Seguiu resto encomenda”.
Não teve dúvidas: assim mesmo
doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade
para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.
(Fernando Sabino)
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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