A Repartição dos Pães
Era sábado e
estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava
demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez
feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos,
como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre
estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado
– que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a
gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À
espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já
seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e
soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o
sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer
alegria seria um insulto à alegria maior.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCiug9ghbEFWYLCUs4XK64sn_20aX9pyeE1wDEZJcFC3qq5vMw-ICugy6jsGWwFRKj3t8vGl2ZswxRvV9rwabyAtnbdQck3eo1n28ZILMbPT04UOSDzVy51343N-FSI7UYfKUJyLEeLv1V/s320/table-fruit.jpg)
Passamos afinal à
sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos
deparamos com a mesa. Não podia ser para nós…
Era uma mesa para
homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera?
Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem?
E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta
por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de
trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele
quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua
selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como
porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa,
pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas
e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As
mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem
esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos
para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a
laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
Junto do prato de
cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos
eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes
ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela
acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o
leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos.
Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante
de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. ‘Tudo como é, não como
quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as
montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um
sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era
hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a
pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da
vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto:
aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada
guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me
fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da
espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora
estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia
vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o
vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como
quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era
rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém.
Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres
vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e
planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de
quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi
tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e
reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem
ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem
saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a
guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais.
E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão
onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu
prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.
Pão é amor entre
estranhos.
Leia também:
Camilo Pessanha - Poemas"Tormento não tem idade" - Moacyr Scliar
Olegário Mariano - O Poeta das Cigarras
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