Torquato da Luz
Retrato
Um poço de ternura.
Cisterna que decanta
o líquido pastoso da loucura
que de súbito em mim se eleva e canta.
Reserva frágil de emoções.
Um forno em que se coze
a sede insaciável que me impõe
que viva e ouse.
Floresta agora, logo após deserto.
Árida aresta de tudo o que me chama.
Não sabendo de nada, apenas certo
da certeza invencível de quem ama.
Cantil de raiva que destila medo,
gato de unhas e patas aguçadas,
rasgo o pano da noite e com um dedo
acuso as madrugadas.
(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)
Cisterna que decanta
o líquido pastoso da loucura
que de súbito em mim se eleva e canta.
Reserva frágil de emoções.
Um forno em que se coze
a sede insaciável que me impõe
que viva e ouse.
Floresta agora, logo após deserto.
Árida aresta de tudo o que me chama.
Não sabendo de nada, apenas certo
da certeza invencível de quem ama.
Cantil de raiva que destila medo,
gato de unhas e patas aguçadas,
rasgo o pano da noite e com um dedo
acuso as madrugadas.
(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)
Resistir
Para o que der e vier,
sigo a tua legenda: resistir.
Mas já me assalta a dor de não saber
se hei-de ficar, se hei-de partir.
Nada do que sonhamos se cumpriu
e o tempo, animal veloz,
vai deixar o vazio
onde devíamos ser nós.
É muito fácil desenhar
o destino à medida.
Difícil é conformar
o desenho e a vida.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
sigo a tua legenda: resistir.
Mas já me assalta a dor de não saber
se hei-de ficar, se hei-de partir.
Nada do que sonhamos se cumpriu
e o tempo, animal veloz,
vai deixar o vazio
onde devíamos ser nós.
É muito fácil desenhar
o destino à medida.
Difícil é conformar
o desenho e a vida.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
Quando a manhã chegar e tu voltares
com o intenso cheiro a maresia
que usas deixar em todos os lugares
por onde passas, pura poesia
ou perdida lembrança dos olhares
que surpresos trocamos algum dia,
vou apertar-te ao peito de maneira
que fiques a meu lado a vida inteira.
Talvez
Talvez na noite inquieta o teu passo sereno
a tua voz chegada do princípio de tudo
as tuas mãos erguidas num aceno
os teus lábios de quem vai beijar o mundo.
as tuas mãos erguidas num aceno
os teus lábios de quem vai beijar o mundo.
Talvez
na manhã clara o teu corpo de fogo
os teus cabelos leque de todas as cores
os teus dedos correndo as ruas do meu corpo
o teu odor a mar por onde quer que fores.
os teus cabelos leque de todas as cores
os teus dedos correndo as ruas do meu corpo
o teu odor a mar por onde quer que fores.
Talvez
somente a luz do teu olhar
o sol que deixas sempre em teu lugar.
o sol que deixas sempre em teu lugar.
(Torquato
da Luz, 2005)
Solidão
Hei-de
lembrar-te ainda, quando o vento
tiver
varrido as folhas da memória
e
nada mais couber na nossa história
de
amor do que o direito ao esquecimento.
Hei-de
lembrar-te ainda, quando a dor
das
horas em que não estive contigo
tiver
passado, exorcizando o perigo
de
me render a outra dor maior.
Hei-de
lembrar-te ainda, quando não
souber
mais quem tu eras, solidão.
(Torquato
da Luz, 2008)
À
espera
Ainda
um dia hei-de contar-te as espantosas
coisas
de que me lembro quando fico à tua espera
horas
e horas, cada vez mais vagarosas,
e
tu não chegas, meu amor, e tu demoras
mais
do que a minha paciência. Quem me dera
aquele
tempo em que era sempre primavera
e
assistia indiferente à passagem das horas.
Mas,
quando chegas, só me ocorre esquecer tudo
e
ter-te uma vez mais como quem tem o mundo.
(Torquato
da Luz, in “Os dias do amor”)
![]() |
"E as janelas, o jardim...". Anna Marinova. |
Nestes dias chuvosos, quando a tua
lembrança vem bater-me na vidraça,
recuso-me de todo a ver quem passa
e procuro nem sequer olhar a rua.
E pela noite dentro, quando a lua
é um pássaro triste que esvoaça
sobre a última árvore da praça,
onde um fantasma sempre se insinua,
reinvento-te e, à luz da madrugada,
concluo que, além de ti, não há mais nada.
(Torquato da Luz, 2008)
Tributário apenas da verdade,
avesso a peias e grilhetas,
feito da massa dos poetas
e dos que amam a liberdade,
sensível à dor própria e à dor alheia,
lutando até ao fim por uma ideia
de peito aberto e sem ter medo
de nada nem de ninguém,
capaz de guardar segredo
mas de o revelar também,
eis como sempre hei-de ser
para o que der e vier.
(Torquato
da Luz, 2007)
Sem
drama
Poucas
pessoas gostam de poesia,
embora
a maioria,
como
é sabido, diga que sim.
É
que a poesia, erva ruim,
cresce
sem pedir licença
e
não precisa de jardim
para
marcar presença.
Vicejando
em qualquer lado,
há
quem a ponha na lapela
para
o encontro aprazado.
Outros
mostam-na à janela
no
lugar do cortinado.
Mas,
sem que nisso haja drama,
raros
são decerto aqueles
que
a fazem dormir com eles
noite
após noite na cama.
(Torquato
da Luz, 2013)
Ainda
as palavras
Há
palavras com pássaros por dentro,
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.
Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.
Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.
Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.
(Torquato da Luz, in "A Porta da Europa", 1978)
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.
Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.
Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.
Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.
(Torquato da Luz, in "A Porta da Europa", 1978)
Silves
Para
além desta porta não há nada
e esta escada
para de súbito no ar.
E que dizer da janela,
também ela ,
que já não dá para o mar?
Nada diremos,
nada.
Na memória arruinada
só persiste o apelo:
reter nas mãos o momento,
bebê-lo até ao fim,
bebê-lo lento,
no esplêndido ondular do teu cabelo.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
e esta escada
para de súbito no ar.
E que dizer da janela,
também ela ,
que já não dá para o mar?
Nada diremos,
nada.
Na memória arruinada
só persiste o apelo:
reter nas mãos o momento,
bebê-lo até ao fim,
bebê-lo lento,
no esplêndido ondular do teu cabelo.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
Por
eles
Por
essa gente parada
que há sempre em todas as gares
e da funda madrugada
nos lança estranhos olhares.
Por essa gente adiada
que há sempre em todos os bares.
Pelos que sonham índias e não têm
sequer um bote para as alcançar,
vascos da gama que de noite vêm
contar-me histórias para me acordar.
Pelos que, afinal, mantêm
vivo nas veias o mar.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
que há sempre em todas as gares
e da funda madrugada
nos lança estranhos olhares.
Por essa gente adiada
que há sempre em todos os bares.
Pelos que sonham índias e não têm
sequer um bote para as alcançar,
vascos da gama que de noite vêm
contar-me histórias para me acordar.
Pelos que, afinal, mantêm
vivo nas veias o mar.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
A
casa iluminada
Houve
um tempo em que nada estava certo:
a noite não era um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu chegaste e o longe fez-se perto:
a labareda de frio
deixou-me a casa iluminada.
Houve um tempo em que tudo estava certo:
a noite era como um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu partiste e, rápido, o deserto
engendrou o desafio
da nossa casa queimada.
Há, porém, ventos e navios
e há, nas amuradas,
suspensa a esperança de outros rios
e outras madrugadas.
É que todos os estios
são primaveras adiadas.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
a noite não era um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu chegaste e o longe fez-se perto:
a labareda de frio
deixou-me a casa iluminada.
Houve um tempo em que tudo estava certo:
a noite era como um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu partiste e, rápido, o deserto
engendrou o desafio
da nossa casa queimada.
Há, porém, ventos e navios
e há, nas amuradas,
suspensa a esperança de outros rios
e outras madrugadas.
É que todos os estios
são primaveras adiadas.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
![]() |
"No Jardim". Vicente Romero. |
Tu és o meu jardim. Há no teu corpo
as longas alamedas da infância.
E eu inventei, suspenso do teu rosto,
as palavras que vencem a distância.
(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)
as longas alamedas da infância.
E eu inventei, suspenso do teu rosto,
as palavras que vencem a distância.
(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)
Porque me deste tudo:
o corpo, a alma e esse jeito
de amar, inteiro e perfeito,
como ao princípio do mundo.
Porque a ti me entreguei
despido de mim, liberto
dos fantasmas que inventei
para meu próprio deserto.
(Torquato da Luz, in "Deserto Próprio", 1994)
o corpo, a alma e esse jeito
de amar, inteiro e perfeito,
como ao princípio do mundo.
Porque a ti me entreguei
despido de mim, liberto
dos fantasmas que inventei
para meu próprio deserto.
(Torquato da Luz, in "Deserto Próprio", 1994)
Aqui
nasci, aqui habito,
aqui fizeram
que fosse o meu lugar.
Aqui entre paredes me limito
à condição daquilo que me deram
na casa onde morar.
Daqui vejo uma pomba atrás do espaço,
procurando entre as asas capturá-lo.
Aqui tento encontrar-me no que faço,
aqui furando o medo acerto o passo
com os outros com quem a medo falo.
Aqui nasci, aqui habito,
aqui puseram
este meu corpo sem me consultar.
Mas é também daqui que lanço o grito
de que ninguém me há-de calar.
(Torquato da Luz, in "Voz Suspensa", 1970)
aqui fizeram
que fosse o meu lugar.
Aqui entre paredes me limito
à condição daquilo que me deram
na casa onde morar.
Daqui vejo uma pomba atrás do espaço,
procurando entre as asas capturá-lo.
Aqui tento encontrar-me no que faço,
aqui furando o medo acerto o passo
com os outros com quem a medo falo.
Aqui nasci, aqui habito,
aqui puseram
este meu corpo sem me consultar.
Mas é também daqui que lanço o grito
de que ninguém me há-de calar.
(Torquato da Luz, in "Voz Suspensa", 1970)
Presença
Já
não estás onde estavas, já não estás
onde sempre te vi.
Mas, olhando o lugar, sinto-te aí
e recupero a paz.
O que conta não é o que se sabe,
tampouco o que se vê.
O que conta é aquilo que não cabe
dentro dos olhos, mas se crê.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
onde sempre te vi.
Mas, olhando o lugar, sinto-te aí
e recupero a paz.
O que conta não é o que se sabe,
tampouco o que se vê.
O que conta é aquilo que não cabe
dentro dos olhos, mas se crê.
(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)
Quando
tudo me pesa, quando a noite
nunca mais é manhã e a frieza
me entra no quarto e vem colar-se
à minha pele, aos músculos, aos ossos,
quando me sinto à beira do naufrágio
e não há salva-vidas, boia, bote
à vista a que me agarrar,
quando tropeço e já me assalta o medo
de nunca mais me levantar,
eis que te vejo e chega a madrugada,
não há mais frio nem me é adverso o mar
e sigo em frente sem temer mais nada.
(Torquato da Luz, 2006)
nunca mais é manhã e a frieza
me entra no quarto e vem colar-se
à minha pele, aos músculos, aos ossos,
quando me sinto à beira do naufrágio
e não há salva-vidas, boia, bote
à vista a que me agarrar,
quando tropeço e já me assalta o medo
de nunca mais me levantar,
eis que te vejo e chega a madrugada,
não há mais frio nem me é adverso o mar
e sigo em frente sem temer mais nada.
(Torquato da Luz, 2006)
Rosto
a rosto
Olhemo-nos
rosto a rosto
e sem demoras troquemos
sobre as rugas do tempo e do desgosto
as palavras que nos devemos.
Palavras arrancadas do mais fundo
da alma, onde as escondemos
tempo demais, como se o mundo
pudesse esperar que nunca fossem ditas.
Palavras feitas de horas infinitas
de silêncio forçado
e enfim libertas do seu longo exílio
por entre a inocência e o pecado.
Palavras que nos sejam um auxílio
para os dias sombrios à nossa espera
e que transportem sol e primavera.
Palavras como espuma e maresia,
temperadas de sal e de calor,
que nos matem a sede de poesia
e a fome de amor.
e sem demoras troquemos
sobre as rugas do tempo e do desgosto
as palavras que nos devemos.
Palavras arrancadas do mais fundo
da alma, onde as escondemos
tempo demais, como se o mundo
pudesse esperar que nunca fossem ditas.
Palavras feitas de horas infinitas
de silêncio forçado
e enfim libertas do seu longo exílio
por entre a inocência e o pecado.
Palavras que nos sejam um auxílio
para os dias sombrios à nossa espera
e que transportem sol e primavera.
Palavras como espuma e maresia,
temperadas de sal e de calor,
que nos matem a sede de poesia
e a fome de amor.
(Torquato
da Luz, 2011)
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