Herbarium
Todas
as manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no bosque, tremendo inteira de
paixão quando descobria alguma folha rara. Era medrosa mas arriscava pés e mãos
por entre espinhos, formigueiros e buracos de bichos (tatu? cobra?) procurando
a folha mais difícil, aquela que ele examinaria demoradamente: a escolhida ia
para o álbum de capa preta. Mais tarde faria parte do herbário, ele tinha em
casa um herbário com quase duas mil espécies de plantas. “Você já viu um
herbário?” – ele quis saber.
François Fressinier. |
Um
vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença. Que doença era essa que o
fazia cambalear, esverdeado e úmido, quando subia rapidamente a escada ou
quando andava mais tempo pela casa? Deixei de roer as unhas, para espanto da
minha mãe que já tinha feito ameaças de cortes de mesada ou proibição de
festinhas no grêmio da cidade. Sem resultado. “Se eu contar, ninguém acredita”
– disse ela quando viu que eu esfregava para valer a pimenta vermelha nas
pontas dos dedos. Fiz minha cara inocente: na véspera, ele me advertira que eu
podia ser uma moça de mãos feias, “Ainda não pensou nisso?” Nunca tinha pensado
antes, nunca me importei com as mãos, mas no instante em que ele fez a pergunta
comecei a me importar. E se um dia elas fossem rejeitadas como as folhas
defeituosas? Ou banais. Deixei de roer as unhas e deixei de mentir. Ou passei a
mentir menos, mais de uma vez me falou no horror que tinha por tudo quanto
cheirava a falsidade, escamoteação.
Estávamos
sentados na varanda. Ele selecionava as folhas ainda pesadas de orvalho quando
me perguntou se já tinha ouvido falar em folha persistente. Não? Alisava o
tenro veludo de uma malva-maçã. A fisionomia ficou branda quando amassou a
folha nos dedos e sentiu o seu perfume. As folhas persistentes duravam até
mesmo três anos mas as cadentes amareleciam e se despregavam ao sopro do
primeiro vento. Assim a mentira, folha cadente que podia parecer tão brilhante
mas de vida breve. Quando o mentiroso olhava para trás, via no final de tudo
uma árvore nua. Seca. Mas o verdadeiro, esse teria uma árvore farfalhante,
cheia de passarinhos – e abriu as mãos para imitar o bater de folhas e asas.
Fechei as minhas. Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas (já
crescidas) eram tentação e punição maior. Podia dizer-lhe que justamente por me
achar assim apagada é que precisava me cobrir de mentira como se veste um manto
fulgurante. Dizer-lhe que diante dele, mais do que diante dos outros, tinha de
inventar e fantasiar para obrigá-lo a se demorar em mim como se demorava agora
na verbena – será que não percebia essa coisa tão simples?
Chegou
ao sítio com suas largas calças de flanela cinza e grosso suéter de lã tecida
em trança, era inverno. E era noite. Minha mãe tinha queimado incenso (era
sexta-feira) e preparou o Quarto do Corcunda, corria na família a história de
um corcunda que se perdeu no bosque e minha bisavó instalou-o naquele quarto
que era o mais quente da casa, não podia haver melhor lugar para um corcunda
perdido ou para um primo convalescente.
Convalescente
do quê? Qual doença tinha ele? Tia Marita, que era alegrinha e gostava de se
pintar, respondeu rindo (falava rindo) que nossos chazinhos e bons ares faziam
milagres. Tia Clotilde, embutida, reticente, deu aquela sua resposta que servia
a qualquer tipo de pergunta: tudo na vida podia se alterar, menos o destino
traçado na mão, ela sabia ler as mãos. “Vai dormir feito uma pedra” – cochichou
tia Marita quando me pediu que lhe levasse o chá de tília. Encontrei-o
recostado na poltrona, a manta de xadrez cobrindo-lhe as pernas. Aspirou o chá.
E me olhou, “Quer ser minha assistente?” – perguntou soprando a fumaça. “A
insônia me pegou pelo pé, ando tão fora de forma, preciso que me ajude. A
tarefa é colher folhas para a minha coleção, vai juntando o que bem entender
que depois seleciono. Por enquanto, não posso mexer muito, terá que ir sozinha”
– disse e desviou o olhar úmido para a folha que boiava na xícara. Suas mãos
tremiam tanto que a xícara transbordou no pires. É o frio, pensei. Mas
continuaram tremendo no dia seguinte que fez sol, amareladas como os esqueletos
de ervas que eu catava no bosque e queimava na chama da vela. Mas o que ele
tem?, perguntei e minha mãe respondeu que mesmo que soubesse não diria, fazia
parte de um tempo em que doença era assunto íntimo.
Eu
mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia principalmente à tia Marita que era
bastante tonta. Menos à minha mãe, porque tinha medo de Deus e menos ainda à
tia Clotilde que era meio feiticeira e sabia ver o avesso das pessoas.
Aparecendo a ocasião, eu enveredava por caminhos os mais imprevistos, sem o
menor cálculo de volta. Tudo ao acaso. Mas aos poucos, diante dele, minha
mentira começou a ser dirigida, com um objetivo certo. Seria mais simples, por
exemplo, dizer que colhi a bétula perto do córrego onde estava o espinheiro.
Mas era preciso fazer render o instante em que se detinha em mim, ocupá-lo
antes de ser posta de lado como as folhas sem interesse, amontoadas no cesto.
Então ramificava os perigos, exagerava as dificuldades, inventava histórias que
encompridavam a mentira. Até ser decepada com um rápido golpe de olhar, não com
palavras, mas com o olhar ele fazia a hidra verde rolar emudecida enquanto minha
cara se tingia de vermelho – o sangue da hidra.
"Campo de papoulas". Anna Marinova. |
Uma
formiga vermelha entrou na greta do lajedo e lá se foi com seu pedaço de folha,
veleiro desarvorado soprado pelo vento. Soprei eu também, a formiga é um
inseto!, gritei, as pernas flexionadas, pendentes os braços para diante e para
trás no movimento do macaco, Hi hi! hu hu! hi hi! hu hu! é um inseto! um
inseto!, repeti rolando no chão. Ele ria e procurava me levantar, você se machuca,
menina, cuidado! Cuidado! Fugi para o campo, os olhos desvairados de pimenta e
sal, sal na boca, não, não vinha ninguém, tudo loucura, uma louca varrida essa
tia, invenção dela, invenção pura, como podia?! Até a cor do vestido,
verde-musgo? E os cabelos, uma louca, tão louca como a irmã de cara pintada feito
uma palhaça, rindo e tecendo seus tapetinhos, centenas de tapetinhos pela casa,
na cozinha, na privada, duas loucas! Lavei os olhos cegos de dor, lavei a boca
pesada de lágrimas, os últimos fiapos de unha me queimando a língua, não! Não.
Não existia ninguém de cabelo de cobre que no fim da semana ia aparecer para
buscá-lo, ele não ia embora nunca mais. Nunca mais!, repeti e minha mãe, que
viera me chamar para o almoço, acabou se divertindo com a cara de diabo que
fiz, disfarçava o medo fazendo caras de medo. E as pessoas se distraíam com
essas caras e não pensavam mais em mim. Quando lhe entreguei a folha de hera
com formato de coração (um coração de nervuras trementes se abrindo em leque
até as bordas verde-azuladas) ele beijou a folha e levou-a ao peito. Espetou-a
na malha do suéter: “Esta vai ser guardada aqui.” Mas não me olhou nem mesmo
quando saí tropeçando no cesto. Corri até a figueira, posto de observação onde
podia ver sem ser vista. Através do rendilhado de ferro do corrimão da escada,
ele me pareceu menos pálido. A pele mais seca e mais firme a mão que segurava a
lupa sobre a lâmina do espinho-do-brejo. Estava se recuperando, não estava?
Abracei o tronco da figueira e pela primeira vez senti que abraçava Deus.
No
sábado, levantei mais cedo. O sol forcejava a névoa, o dia seria azul quando
ele conseguisse rompê-la. “Aonde você vai com esse vestido de maria-mijona?” –
perguntou minha mãe me dando a xícara de café com leite. Por que desmanchou a barra?”
Desviei sua atenção para a cobra que inventei ter visto no terreiro, toda preta
com listras vermelhas, seria uma coral? Quando ela correu com a tia para ver,
peguei o cesto e entrei no bosque. Como explicar-lhe que descera todas as
barras das saias para esconder minhas pernas finas, cheias de marcas de picadas
de mosquitos. Numa alegria desatinada fui colhendo as folhas, mordi goiabas
verdes, atirei pedras nas árvores, espantando os passarinhos que cochichavam
seus sonhos, me machucando de contente por entre a galharia. Corri até o
córrego. Alcancei uma borboleta e prendendo-a pelas pontas das asas deixei-a na
corola de uma flor, Te solto no meio do mel, gritei-lhe. O que vou receber em
troca? Quando perdi o fôlego, tombei de costas nas ervas do chão. Fiquei rindo
para o céu de névoa atrás da malha apertada dos ramos. Virei de bruços e
esmigalhei nos dedos os cogumelos tão macios que minha boca começou a se encher
d’água. Fui avançando de rastros até o pequeno vale de sombra debaixo da pedra.
Ali era mais frio e maiores os cogumelos pingando um líquido viscoso dos seus
chapéus inchados. Salvei uma abelhinha das mandíbulas de uma aranha, permiti
que a saúva-gigante arrebatasse a aranha e a levasse na cabeça como uma trouxa
de roupa esperneando, mas recuei quando apareceu o besouro de lábio leporino.
Por um instante me vi refletida em seus olhos facetados. Fez meia-volta e se
escondeu no fundo da fresta. Levantei a pedra: o besouro tinha desaparecido,
mas no tufo raso vi uma folha que nunca encontrara antes, única. Solitária. Mas
que folha era aquela? Tinha a forma aguda de uma foice, o verde do dorso com
pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue. Uma pequena foice ensanguentada
– foi no que se transformou o besouro? Escondi a folha no bolso, peça principal
de um jogo confuso. Essa eu não juntaria às outras folhas, essa tinha que ficar
comigo, segredo que não podia ser visto. Nem tocado. Tia Clotilde previa os
destinos mas eu podia modificá-los, assim, assim! e desfiz na sola do sapato o
ninho de cupins que se armava debaixo da amendoeira. Fui andando solene porque
no bolso onde levara o amor levava agora a morte.
Tia
Marita veio ao meu encontro, mais aflita e gaguejante do que de costume. Antes
de falar já começou a rir: “Acho que vamos perder nosso botânico, sabe quem
chegou? A amiga, a mesma moça que Clotilde viu na mão dele, lembra? Os dois vão
embora no trem da tarde, ela é linda como os amores, bem que Clotilde viu uma
moça igualzinha, estou toda arrepiada, olha aí, me pergunto como a mana adivinha
uma coisa dessas!” Deixei na escada os sapatos pesados de barro. Larguei o
cesto. Tia Marita me enlaçou pela cintura enquanto se esforçava para lembrar o
nome da recém-chegada, um nome de flor, como era mesmo? Fez uma pausa para
estranhar minha cara branca, e esse brancor de repente? Respondi que voltara
correndo, a boca estava seca e o coração fazia um tuntum tão alto, ela não
estava ouvindo? Encostou o ouvido no meu peito e riu se sacudindo inteira,
quando tinha minha idade pensa que também não vivia assim aos pulos?
Fui
me aproximando da janela. Através do vidro (poderoso como a lupa) vi os dois.
Ela sentada com o álbum provisório de folhas no colo. Ele, de pé e um pouco
atrás da cadeira, acariciando-lhe o pescoço, e seu olhar era o mesmo que tinha
para as folhas escolhidas, a mesma leveza de dedos indo e vindo no veludo da
malva-maçã. O vestido não era verde mas os cabelos soltos tinham o reflexo de
cobre que transparecera na mão. Quando me viu, veio até a varanda no seu andar
calmo. Mas vacilou quando disse que esse era o nosso último cesto, por acaso
não tinham me avisado? O chamado era urgente, teriam que voltar nessa tarde.
Sentia muito perder tão devotada ajudante, mas um dia, quem sabe?... Precisaria
agora perguntar à tia Clotilde em que linha do destino aconteciam os
reencontros.
Estendi-lhe
o cesto, mas ao invés de segurar o cesto, segurou meu pulso: eu estava
escondendo alguma coisa, não estava? O que estava escondendo, o quê? Tentei me
livrar fugindo para os lados, aos arrancos, não estou escondendo nada, me
larga! Ele me soltou mas continuou ali, de pé, sem tirar os olhos de mim.
Encolhi quando me tocou no braço: “E o nosso trato de só dizer a verdade? Hem?
Esqueceu nosso trato?” – perguntou baixinho. Enfiei a mão no bolso e apertei a
folha, intacta a umidade pegajosa da ponta aguda, onde se concentravam as
nódoas vermelhas. Ele esperava. Eu quis então arrancar a toalha de crochê da
mesinha, cobrir com ela a cabeça e fazer micagens, hi hi! hu hu! até vê-lo rir
pelos buracos da malha, quis pular da escada e sair correndo em zigue-zague até
o córrego, me vi atirando a foice na água, que sumisse na correnteza! Fui
levantando a cabeça. Ele continuava esperando, e então? No fundo da sala, a
moça também esperava numa névoa de ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela
última vez, sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.
(Lygia Fagundes Telles)
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