Tema de redação – UECE – 2012 – 1º
semestre
O
texto a seguir é um fragmento da fala do escritor moçambicano Mia Couto, na
edição de 2011 das Conferências do Estoril, cujo título foi “Desafios globais,
respostas locais”. Convidado pela organização do evento a discursar sobre
segurança, o escritor, desconstruindo esse tema, fala, na verdade, sobre medo.
Nesta
prova de redação, sua tarefa é interagir com Mia Couto. Tomando por base uma ou
mais questões discutida(s) no texto, escreva uma carta dirigida ao autor,
expressando sua concordância ou discordância e apresentando argumentos que deem
sustentação ao seu ponto de vista.
MURAR O MEDO
O
medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais
criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando
chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de
agentes de segurança privada das almas.
O
medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei minha
casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser
eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa
altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más
do que coisas más propriamente ditas.
No
Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha invejável casting
internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que
lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses
fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os chineses abriram um restaurante a nossa porta, os terroristas são hoje
governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que
não deixou descendência.
A
guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando
rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente. E, porque se
trata de entidades demoníacas, precisamos de intervenção com legitimidade
divina. O que era ideologia passou a ser crença; o que era política tornou-se
religião; o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para
fabricar armas é preciso fabricar inimigos; para produzir inimigos é imperioso
sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato
e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome.
Eis o que nos dizem: “para superar as ameaças domésticas, precisamos de mais
polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade; para
enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços
secretos e a suspensão temporária de nossa cidadania”.
Todos
sabemos que o caminho verdadeiro tem de ser outro. Todos sabemos que esse outro
caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecer melhor esses que
d’um e de outro lado aprendemos a chamar de “eles”.
Aos
adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as
epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a
natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos, como cidadãos e
como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro
estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade
pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas
essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como, por exemplo,
estas: “Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?
Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares em
armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia
são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaf? Por que
motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?”
Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança
mundial, teremos que enfrentar ameaças bem mais reais e urgentes. Há uma arma
de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem
que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século
XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para se superar a fome
mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento.
Mencionarei
ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo, uma entre cada três
mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante seu tempo de
vida. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem dar-nos conta,
fomos convertidos em soldados de um exército de sem nomes e, como militares sem
farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões.
As questões da ética são esquecidas por estar provada a barbaridade dos outros.
E, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de
ética nem de legalidade.
Há
muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje
no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Citarei
Eduardo Galeno acerca disso, que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de
perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho;
os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta d’armas, e as
armas têm medo da falta de guerras. E, se calhar, acrescento agora eu: há quem
tenha medo de que o medo acabe”.
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=ao-_QKp9qnQ&feature=related
Transcrição
adaptada.
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Tema de redação – UECE – 2007 – 1º semestre
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