O
remo
—
Faz-me perguntas — pediu. Encontrava-o todas as tardes à porta do mesmo bar.
Normalmente entrávamos, bebíamos um copo e íamos para casa. Conversávamos
pouco. Nestes últimos dias andava esquisito.
—
Que espécie de perguntas?
—
Sei lá . . . Pergunta-me se sonhei, por exemplo.
Eu
estava sério. Estudava-lhe o aborrecimento, aquele desapego sem medida por
todas as coisas.
"Portrait of two women". Diego Rivera. |
—
Sonhaste?
—
Sonhei.
Ficamos
calados, Pôs-se a olhar para mim e insistiu:
—
Então?
—
Então o quê?
—
Pergunta com quem sonhei.
E
eu:
—
Com quem sonhaste?
—
Com duas mulheres.
Ficamos
calados. Voltou a insistir:
—
Então?
—
Então o quê?
—
Pergunta mais coisas. Pergunta tudo o que se pode perguntar acerca de um sonho.
Já sabes que sonhei com duas mulheres. O resto é fácil, não te parece?
— Claro. Vou perguntar-te tudo o que é possível perguntar acerca de um sonho.Ora ouve:
— Claro. Vou perguntar-te tudo o que é possível perguntar acerca de um sonho.Ora ouve:
—
Conhecias as mulheres do sonho?
Não
me parecia mais perturbado que de costume.
—
Conheço sempre as mulheres com quem sonho.
—
Isso é mau. Devíamos sonhar com as outras.
E
ele, rápido:
—
Deixa-te de considerações e faz perguntas.
—
Que te aconteceu no sonho?
—
Essa pergunta é para mais daqui a um bocado. Pergunta onde passamos a noite.
Perguntei.
— No meu quarto. Não em minha casa, mas no meu quarto. Sabes que há tipos com sorte, casam com mulheres giras, bonequinhas, uma coisa compensa a outra e a
vida leva-se. Agora a mim calhou-me cá um estafermo... como querias que fosse em minha casa?
Perguntei.
— No meu quarto. Não em minha casa, mas no meu quarto. Sabes que há tipos com sorte, casam com mulheres giras, bonequinhas, uma coisa compensa a outra e a
vida leva-se. Agora a mim calhou-me cá um estafermo... como querias que fosse em minha casa?
—
Então de quem era o quarto?
—
Era meu.
—
Tens algum apartamento?
Riu
com suavidade.
—
Não é isso. Era meu no sonho. Não tenho apartamento, não tenho automóveis.
Tenho todos os requerimentos da Repartição, montanhas de papéis. Tiranos
polidos, ditadores intratáveis, fazem-me um cerco de estratégias.
—
Também tens um filho.
Falei-lhe
nele porque era preciso dizer alguma coisa. O seu aborrecimento era contagioso
e suspicaz: via em cada palavra um retiro, açoitava-se à claridade amiga das
coisas mais simples.
—
Tenho. Digo-lhe a todos os almoços que não deve comer com as mãos. Mas o tipo
insiste e eu qualquer dia desisto. Passamos todos a comer com as mãos e pronto.
—
Já posso perguntar o que aconteceu no sonho?
—
Ainda não. Pergunta primeiro quem eram as mulheres.
Perguntei.
— As mesmas — retorquiu — que encontro aqui várias vezes quando estamos a beber um copo.
— As mesmas — retorquiu — que encontro aqui várias vezes quando estamos a beber um copo.
—
Ah sim?
Deu
de ombros. Ficamos calados. E ele, de novo:
—
Já podes fazer aquela pergunta.
—
Que te aconteceu no sonho?
—
Estávamos nus e foi o diabo. Sentia no corpo a contensão que inquieta os touros
nos curros. Um garanhão incisivo. Incisivo e com um fôlego de se lhe tirar o
chapéu, sabes o que isso é? O fôlego dava as mãos à imaginação e depois de
fazermos muitas coisas lembro-me de ter agredido com os calcanhares a cauda de
um cometa.
—
Bravo. E isso durou toda a noite?
—
A noite toda.
Ficou
calado. A seguir.
—
Pergunta o que aconteceu quando o sonho acabou?
—
Que aconteceu?
Não
respondeu. Deixei passar alguns momentos e repeti a pergunta.
—
Que aconteceu quando o sonho acabou?
—
Aborreci-me. À tarde vim até aqui beber um copo. Foi naquele dia em que
adoeceste.
Mal
entrei encontrei as duas. Riam ao balcão.
—
Quais duas?
—
As duas mulheres do sonho, ora quem havia de ser.
—
Ah sim?
—
Agora não faças perguntas. Estavam as duas e disseram-me ao mesmo tempo:
"Olha, esta noite sonhamos contigo." Desatei a rir. E elas, sempre as
duas "Onde é que está a piada? O que tem graça, disseram ainda, foi termos
na mesma noite sonhado as duas contigo; estávamos, quando entraste, a contar o
sonho uma à outra". Eu disse-lhes que também tinha sonhado com elas. Curioso
como acreditaram logo. Podes continuar a perguntar.
—
E depois?
—
Depois o quê?
—
A história acaba aí?
—
Claro que não.
—
que fizeram depois?
—
Convidei-as para a minha mesa e combinamos transferir o sonho para o quarto de
uma delas. Concordaram. Mas antes disso, talvez para comemorar, mandamos vir
bacalhau e umas tantas garrafas de vinho.
—
E depois?
—
Depois o quê?
—
Comeram o bacalhau?
—
Comemos e bebemos muito. As coisas embrulharam-se porque elas beberam bastante.
Fomos conforme pudemos para o quarto e ainda não nos tínhamos despido
totalmente já estávamos a dormir. Quando acordei havia nódoas de vinho por todo
o lado, não era possível fazer fosse o que fosse. Sabes que estou casado com um
estafermo e lembrei-me disso. Mas fazer ali alguma coisa era como desovar num
barril. Aqueles diabos até o vinho conseguiram prostituir: descia-lhes pelos
seios, metia-se-lhes pelas coxas.
—
E depois?
—
Vesti-me e vim para a rua.
—
E agora?
—
Acaba lá com as perguntas. Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego num remo e
fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo que veja um
homem: "Sabes o que é isto?", e mostro-lhe o remo. Se ele disser que
é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até
desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das
árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que
veja o primeiro homem pergunto: "Sabes o que é isto?" E se mesmo
assim ele disser que é um remo, continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o
homem que for capaz de dizer que aquilo é uma pá de moinho, espeto o remo no chão,
instalo-me e recomeço a viver.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
Leia também:
"O pôr-do-sol no Peloponeso" – Affonso Romano de Sant´Anna
"Os terroristas" – Moacyr Scliar
Mário Faustino – Poemas
Bocage – Poemas
Conheça as apostilas de literatura do blog Veredas da Língua. Clique em uma das imagens abaixo e saiba como adquiri-las.
ATENÇÃO: Além das apostilas, o aluno recebe também, GRATUITAMENTE, o programa em Powerpoint: 500 TEMAS DE REDAÇÃO
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário