Receita de
Domingo
Ter na véspera o cuidado de
escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da
moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de
vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente
as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o
retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de
novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da
trombeta do arcanjo.
Frederick Judd Waugh -"Family resting under a tree'-oil " |
Café e jornais devem estar
à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e
voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma
dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas, panelas,
frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto
e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a
galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos
de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir deslumbrado que faz
domingo.
Enquanto tomamos café,
lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela
casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos
e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a
fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.
Só depois de chatear
suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia,
naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilinguida de toda a redondeza.
Se a Aeronáutica não se
dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos,
torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais
kar do que os próprios cavaleiros.
Comprar para a meninada
tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas
cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em forma de pinguim,
macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no momento em que o
terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão
para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia
recomenda não contrariar demais as crianças.
No instante em que a
meninada já comece a “encher”, a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e
deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso
envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol
até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos
despertem do meio-sono.
A caminho de casa, é de bom
alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via
há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho
branco.
O banho, o espaçado almoço,
o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o
nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este
nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de
pingue-pongue.
Novamente em casa,
conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto
estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as
luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o
sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la
com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho
da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.
Noite pesada. À luz da
lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o
mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da
nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a
lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de
egoísmos.
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Leia também:
“Quando as crianças brincam” – Fernando Pessoa
“O homem e a galinha” – Ruth Rocha
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