Perguntas à Língua Portuguesa
Venho brincar aqui no
Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa,
essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos
mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e
poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero
é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto
da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a
linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a
Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o
mundo mutuamente se desobedecem.
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"Sisters and a book". Iman Maleki. |
Meu anjo da guarda,
felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam:
que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos
simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a
língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa
elegância? Nenhuma, exceto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou
estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita
conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina
do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho
sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do
mundo, neste subúrbio.
No enquanto,
defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto,
vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança
todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a
gramáticas.
Esta obra de
reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a
língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um
pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando
o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste
tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe
as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas
que se podem colocar à língua:
– Se pode dizer de um careca que
tenha couro cabeludo?
– No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se
aplica a expressão: passar a noite em branco?
– A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de
ordem fonética?
– O mato desconhecido é que é o anonimato?
– O pequeno viaduto é um abreviaduto?
– Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
– Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
– Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
– Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última
reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está
ocorrendo não é uma reencornação?
– O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim
ou riofim?
– Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”?
– Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio
ou um desmarço?
– Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
– Mulher desdentada pode usar fio dental?
– A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
– As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome:
“finanças”?
– Um tufão pequeno: um tufinho?
– O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
– Em águas doces alguém se pode salpicar?
– Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
– Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
– Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
– Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa
que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português
corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós.
Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos,
fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando
colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo
trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites,
somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar
brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
(Mia Couto)
"Dialogando com o público leitor" - João Ubaldo Ribeiro
"A mensagem" - Millôr Fernandes
"Canto de Natal" - Manuel Bandeira
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