Seguidores

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Texto: "Mais burrice, pessoal" - Paulo Leminski

Mais burrice, pessoal

É preciso acreditar em alguma coisa.
Acreditar, por exemplo, que o ser humano é o único animal que solta marimbondos de fogo pela boca. Acreditar, digamos, que a letra de “A Minha Renúncia”, cantada por Nelson Gonçalves, é da autoria de Jânio Quadros, um verdadeiro retrato do artista quando sóbrio. Acreditar nas virtudes curativas do chá de boldo, da ipecacuanha, da casca de batata. Acreditar, piamente, que vai terminar a matança das baleias, que pulularão nos mares, na entrada do novo milênio, que se anuncia. Crer, senhores, crer com fé de velhinha polaca. Crer, vá lá, que, um belo dia, Sócrates (o jogador, não o filósofo) vai ser presidente da República. Acreditar que existe alguma coisa além da morte, já que, do lado de cá, tem tanta coisa interessante. Tem que acreditar, não interessa em quê. Acreditar em cegonha, em Papai Noel. Em coelhinho da Páscoa e em sociedade sem classes. Crer, com funda fé, na vitória final do bem, do concretismo e das conquistas fundamentais da tropicália. Sobretudo, acreditar que tudo vai melhorar, o volume da dívida externa, a qualidade da carne bovina, a ilegível letra dos médicos, os quilates das pedras preciosas do Abi-Ackel, o espírito democrático do general Newton Cruz, o direto de esquerda do Maguila, o liberalismo do Vaticano, o grau de consciência política dos surfistas cariocas. Acreditar, acreditar em tudo, de preferência.
Sem fé, a gente sai do juvenihilismo, do Martins Suzuki, o Bruce Lee do jornalismo brasileiro (cada porrada é um tombo), para se atirar nos braços do veteroceticismo, tão bem detectado pelo Sérgio Augusto.
Os muito cínicos que me desculpem, mas fé é fundamental.
E, para ter fé, é preciso uma boa e corajosa dose de burrice.
O que eu vejo nos meus colegas da Folha é que todo mundo é inteligente demais. Cruz credo! Até parece que todo mundo, quando crescer, quer ser Paulo Francis. Ou Deus, pelo menos.
E eu estou aqui para alertar contra os perigos da inteligência e da lucidez em estado puro.
Eu quero a inteligência em estado burro.
Inteligência é que nem droga. Nego começa com um pouquinho, vai vai aumentando a dose. E de repente, está viciado. Pronto, não acredita mais em nada do que lê, venha donde vier, dos Upanishads, do livro do Gênesis, do Corão, do Bagavad Ghita, da Declaração dos Direitos do Homem, do Livro dos Mórmons, do Manifesto Comunista, do “Diário Oficial”, do “Planeta Diário”.
Inteligência em estado puro é um perigo. Ela leva ao ceticismo, ao sarcasmo, ao deboche, ao estado sardônico do Ruy Castro, por exemplo. Tudo é risível porque, sempre, o rei está nu. E se não estiver?
Semanas atrás, publiquei aqui mesmo um brado de alerta pedindo “carinhos e ternuras” aos meus colegas de lucidez. O apelo caiu em ouvidos surdos. Todos, sem exceção, continuaram sua louca marcha suicida em direção à lucidez, à visão crítica, à maldita inteligência. Depois, não digam que eu não avisei.
Quanto a mim, tenho uma fé inquebrantável no fato, indiscutível, de que estou aqui, sentado à máquina, escrevendo um texto em prol do essencial, aquele componente da estupidez sem o qual não há vida humana possível, nestes tempos Blade Runner de pós-tudo e pré-algo.
     E essa certeza enche a minha vida de calor e sentido, nesta madrugada, dispendiosa arquitetura que um passarinho, amigo meu, acaba de liquidar com um simples pio-pio.

(Paulo Leminski)



Leia também:


Conheça as apostilas de literatura do blog Veredas da Língua. Clique em uma das imagens abaixo e saiba como adquiri-las.














ATENÇÃO: Além das apostilas, o aluno recebe também, GRATUITAMENTE, o programa em Powerpoint: 500 TEMAS DE REDAÇÃO




Um comentário: