Olhos de ressaca - Capítulo XXXII
Tudo
era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se
aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no
outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o
agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que
estava no quintal nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.
–
Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um
susto.
Capitu, interpretada por Maria Fernanda Cândido. |
Fui
devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um
espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,
moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas.
Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala,
pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:
–
Há alguma cousa?
–
Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a
lição. Como passou a noite?
–
Eu bem. José Dias ainda não falou?
–
Parece que não.
–
Mas então quando fala?
–
Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada,
falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer
primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...
–
Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já,
e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto;
acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá
alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com
ele, Bentinho.
–
Teimo- hoje mesmo ele há de falar.
–
Você jura?
–
Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me
lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e
dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e
queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me
perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a
doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra
idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto,
com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que
entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica
dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da
dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido
misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se
retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às
outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos
ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos
minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo
infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca
deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o
gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão
padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias
que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do
inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para
emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado,
agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e
disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.
–
Você?
–
Eu mesmo.
–
Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
–
Se embaraçar, você desembaraça depois.
–
Vamos ver.
(Machado de Assis, in "Dom
Casmurro")
"Reinauguração" — Carlos Drummond deAndrade
"A flor no asfalto" — Otto Lara Resende
"Brasileiro, homem do amanhã" — Paulo Mendes Campos
"Eu, etiqueta" — Carlos Drummond de Andrade
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