Calunga
As primeiras chuvas tinham feito poças ao redor da casa, tinham enchido os barreiros onde os sapos-cururus badernavam. Lula saiu com a lâmpada para ver os sapos cantar. Os seus passos possuíam essa orientação maravilhosa, meio trôpega mas certa, dos passos dos sonâmbulos. Os insetos despertados pela luz vieram rodar em torno da lâmpada. Vieram borboletas escuras, besouros, baratas-d’água, mosquitos. O homem estranho com sua lâmpada parecia ter um mundo luminoso na mão, em redor do qual uma população alada formigava. Parou à beira dum barreiro. A saparia espantada mergulhou na água suja. O coro esquisito ficou mudo de repente. O homem de alma mudada pela doença parou, esperando, sentado no chão frio.
Estava imóvel como a superfície do barreiro. A lâmpada embaciada pelo hálito da noite entretinha agora uns poucos insetos fanáticos da luz. Tudo quieto, o primeiro cururu surgiu na margem, molhado, reluzente na semi-escuridade. Engoliu um mosquito, baixou a cabeçorra, tragou um cascudinho, mergulhou de novo e, bum-bum, soou uma nota soturna do concerto interrompido. Em poucos instantes o barreiro ficou sonoro como um convento de frades. Vozes roucas, foi-não-foi, tam-tans, bum-buns, choros, esgoelamentos finos de rãs, acompanhamentos profundos de sapos respondiam-se. Os bichos apareciam, mergulhavam, arrastavam-se nas margens, abriam grandes círculos na flor d’água. Lula estava realmente num outro mundo, que era o mundo noturno de sua ilha, confinado, sonoro, povoado de vozes e de seres que não se viam durante o dia.
Daí a pouco, dentro da bruta escuridão, surgiram dois olhos luminosos, fosforescentes como dois vaga-lumes. Um sapo-cururu grelou-os e ficou deslumbrado, com os olhos esbugalhados, presos naquela boniteza luminosa. Os dois olhos fosforescentes se aproximaram mais e mais, como dois pequenos holofotes na cabeça triangular da serpente. O sapo não se movia, fascinado. Sem dúvida queria fugir, previa o perigo porque emudecera mas já não podia andar, imobilizado, os olhos feíssimos, agarrados aos olhos luminosos e bonitos como um pecado. Num bote a cabeça triangular abocanhou a boca imunda do batráquio. Ele não podia fugir àquele beijo. A boca fina do réptil arreganhou-se desmesuradamente, envolveu o sapo até os olhos. Ele se baixava dócil, entregando-se à morte tentadora, apenas agitando docemente as patas sem provocar nenhuma reação ao sacrifício. A barriga disforme e negra desapareceu na goela dilatada da cobra. E num minuto as perninhas do cururu lá se foram ainda vivas para as entranhas famintas. O coro imenso continuava sem dar fé do que acontecia a um dos seus cantores. Surgiu uma outra cobra e segurou outro compadre sapo, deglutia-o porém com protestos apenas suaves do bicho que gemia uma coisa diferente de seu bum-bum habitual, agora mais canto, com uns tons de resignação diante da força do mais poderoso.
(Jorge de Lima, trecho do romance "Calunga")
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