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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Torquato da Luz – Poemas

Torquato da Luz

Retrato

Um poço de ternura. 
Cisterna que decanta
o líquido pastoso da loucura
que de súbito em mim se eleva e canta.

Reserva frágil de emoções.
Um forno em que se coze
a sede insaciável que me impõe
que viva e ouse.

Floresta agora, logo após deserto.
Árida aresta de tudo o que me chama.
Não sabendo de nada, apenas certo
da certeza invencível de quem ama.

Cantil de raiva que destila medo,
gato de unhas e patas aguçadas,
rasgo o pano da noite e com um dedo
acuso as madrugadas.

(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)

Resistir

Para o que der e vier,
sigo a tua legenda: resistir.
Mas já me assalta a dor de não saber
se hei-de ficar, se hei-de partir.

Nada do que sonhamos se cumpriu
e o tempo, animal veloz,
vai deixar o vazio
onde devíamos ser nós.

É muito fácil desenhar
o destino à medida.
Difícil é conformar
o desenho e a vida.

(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)


"Touched by love". Josef Kote.
A vida inteira

Quando a manhã chegar e tu voltares 
com o intenso cheiro a maresia
que usas deixar em todos os lugares
por onde passas, pura poesia
ou perdida lembrança dos olhares
que surpresos trocamos algum dia,

vou apertar-te ao peito de maneira
que fiques a meu lado a vida inteira. 

(Torquato da Luz, 2008)

Talvez


Talvez na noite inquieta o teu passo sereno
a tua voz chegada do princípio de tudo
as tuas mãos erguidas num aceno
os teus lábios de quem vai beijar o mundo.

Talvez na manhã clara o teu corpo de fogo
os teus cabelos leque de todas as cores
os teus dedos correndo as ruas do meu corpo
o teu odor a mar por onde quer que fores.

Talvez somente a luz do teu olhar
o sol que deixas sempre em teu lugar.

(Torquato da Luz, 2005)

Solidão

Hei-de lembrar-te ainda, quando o vento
tiver varrido as folhas da memória
e nada mais couber na nossa história
de amor do que o direito ao esquecimento.

Hei-de lembrar-te ainda, quando a dor
das horas em que não estive contigo
tiver passado, exorcizando o perigo
de me render a outra dor maior.

Hei-de lembrar-te ainda, quando não
souber mais quem tu eras, solidão.

(Torquato da Luz, 2008)
À espera

Ainda um dia hei-de contar-te as espantosas
coisas de que me lembro quando fico à tua espera
horas e horas, cada vez mais vagarosas,
e tu não chegas, meu amor, e tu demoras
mais do que a minha paciência. Quem me dera
aquele tempo em que era sempre primavera
e assistia indiferente à passagem das horas.

Mas, quando chegas, só me ocorre esquecer tudo
e ter-te uma vez mais como quem tem o mundo.

(Torquato da Luz, in “Os dias do amor”)

"E as janelas, o jardim...". Anna Marinova.
Mais nada

Nestes dias chuvosos, quando a tua
lembrança vem bater-me na vidraça,
recuso-me de todo a ver quem passa
e procuro nem sequer olhar a rua.

E pela noite dentro, quando a lua
é um pássaro triste que esvoaça
sobre a última árvore da praça,
onde um fantasma sempre se insinua,

reinvento-te e, à luz da madrugada,
concluo que, além de ti, não há mais nada.

(Torquato da Luz, 2008)

O que der e vier

Tributário apenas da verdade,
avesso a peias e grilhetas,
feito da massa dos poetas
e dos que amam a liberdade,
sensível à dor própria e à dor alheia,
lutando até ao fim por uma ideia
de peito aberto e sem ter medo
de nada nem de ninguém,
capaz de guardar segredo
mas de o revelar também,
eis como sempre hei-de ser
para o que der e vier.

(Torquato da Luz, 2007)

Sem drama

Poucas pessoas gostam de poesia,
embora a maioria,
como é sabido, diga que sim.
É que a  poesia, erva ruim,
cresce sem pedir licença
e não precisa de jardim
para marcar presença.

Vicejando em qualquer lado,
há quem a ponha na lapela
para o encontro aprazado.
Outros mostam-na à janela
no lugar do cortinado.

Mas, sem que nisso haja drama,
raros são decerto aqueles
que a fazem dormir com eles
noite após noite na cama.

(Torquato da Luz, 2013)

Ainda as palavras

Há palavras com pássaros por dentro,
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.

Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.

Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.

Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.

(Torquato da Luz, in "A Porta da Europa", 1978)

Silves

Para além desta porta não há nada
e esta escada
para de súbito no ar.

E que dizer da janela,
também ela ,
que já não dá para o mar?

Nada diremos,
nada.

Na memória arruinada
só persiste o apelo:
reter nas mãos o momento,
bebê-lo até ao fim,
bebê-lo lento,
no esplêndido ondular do teu cabelo.

(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)

Por eles

Por essa gente parada
que há sempre em todas as gares
e da funda madrugada
nos lança estranhos olhares.
Por essa gente adiada
que há sempre em todos os bares.

Pelos que sonham índias e não têm
sequer um bote para as alcançar,
vascos da gama que de noite vêm
contar-me histórias para me acordar.

Pelos que, afinal, mantêm
vivo nas veias o mar.

(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)

A casa iluminada

Houve um tempo em que nada estava certo:
a noite não era um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu chegaste e o longe fez-se perto:
a labareda de frio
deixou-me a casa iluminada.

Houve um tempo em que tudo estava certo:
a noite era como um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu partiste e, rápido, o deserto
engendrou o desafio
da nossa casa queimada.

Há, porém, ventos e navios
e há, nas amuradas,
suspensa a esperança de outros rios
e outras madrugadas.

É que todos os estios
são primaveras adiadas.

(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)

"No Jardim". Vicente Romero.
Jardim

Tu és o meu jardim. Há no teu corpo
as longas alamedas da infância.
E eu inventei, suspenso do teu rosto,
as palavras que vencem a distância.

(Torquato da Luz, in "Lucro Lírico", 1973)

Deserto próprio

Porque me deste tudo:
o corpo, a alma e esse jeito
de amar, inteiro e perfeito,
como ao princípio do mundo.

Porque a ti me entreguei
despido de mim, liberto
dos fantasmas que inventei
para meu próprio deserto.

(Torquato da Luz, in "Deserto Próprio", 1994)

Aqui

Aqui nasci, aqui habito,
aqui fizeram
que fosse o meu lugar.
Aqui entre paredes me limito
à condição daquilo que me deram
na casa onde morar.

Daqui vejo uma pomba atrás do espaço,
procurando entre as asas capturá-lo.
Aqui tento encontrar-me no que faço,
aqui furando o medo acerto o passo
com os outros com quem a medo falo.

Aqui nasci, aqui habito,
aqui puseram
este meu corpo sem me consultar.
Mas é também daqui que lanço o grito
de que ninguém me há-de calar.

(Torquato da Luz, in "Voz Suspensa", 1970)

Presença

Já não estás onde estavas, já não estás
onde sempre te vi.
Mas, olhando o lugar, sinto-te aí
e recupero a paz.

O que conta não é o que se sabe,
tampouco o que se vê.
O que conta é aquilo que não cabe
dentro dos olhos, mas se crê.

(Torquato da Luz, in "Destino do Mar", 1991)

Sem medo

Quando tudo me pesa, quando a noite
nunca mais é manhã e a frieza
me entra no quarto e vem colar-se
à minha pele, aos músculos, aos ossos,

quando me sinto à beira do naufrágio
e não há salva-vidas, boia, bote
à vista a que me agarrar,

quando tropeço e já me assalta o medo
de nunca mais me levantar,

eis que te vejo e chega a madrugada,
não há mais frio nem me é adverso o mar
e sigo em frente sem temer mais nada.

(Torquato da Luz, 2006)

Rosto a rosto

Olhemo-nos rosto a rosto
e sem demoras troquemos
sobre as rugas do tempo e do desgosto
as palavras que nos devemos.
Palavras arrancadas do mais fundo
da alma, onde as escondemos
tempo demais, como se o mundo
pudesse esperar que nunca fossem ditas.
Palavras feitas de horas infinitas
de silêncio forçado
e enfim libertas do seu longo exílio
por entre a inocência e o pecado.
Palavras que nos sejam um auxílio
para os dias sombrios à nossa espera
e que transportem sol e primavera.
Palavras como espuma e maresia,
temperadas de sal e de calor,
que nos matem a sede de poesia
e a fome de amor.

(Torquato da Luz, 2011)


Leia também:

“Um sonho de simplicidade” – Rubem Braga
Olegário Mariano – O Poeta das Cigarras
"A Repartição dos Pães" - Clarice Lispector
“A agenda” – Luis Fernando Verissimo

www.veredasdalingua.blogspot.com.br

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