Brasileiro,
homem do amanhã
Há, em nosso povo, duas constantes
que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o
mundo. Brasileiro até demais. Colunas da brasilidade, as duas colunas são: a
capacidade de dar um jeito; a capacidade de adiar.
A primeira é, ainda, escassamente
desconhecida, e nada compreendida, no exterior; a segunda, no entanto, já anda
bastante divulgada lá fora, sem que,direta ou sistematicamente, o corpo
diplomático contribua para isso.
Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain
diziam apenas por humorismo (“Nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer
depois de amanhã”), não é, no Brasil, uma deliberada norma de conduta, uma
diretriz fundamental. Não, é mais, é bem mais forte do que qualquer princípio
da vontade: é um instinto inelutável, uma força espontânea da estranha e
surpreendente raça brasileira. Para o brasileiro, os atos fundamentais da
existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se
possível, também adiada).
Michael Cheval. |
Adiamos em virtude de um verdadeiro
e inevitável estímulo inibitório, do mesmo modo que protegemos os olhos com a
mão, ao surgir, na nossa frente, um foco luminoso intenso. A coisa deu em
reflexo condicionado: proposto qualquer problema a um brasileiro, ele reage, de
pronto, com as palavras: logo à tarde, só à noite, amanhã, segunda-feira;
depois do Carnaval; no ano que vem.
Adiamos tudo: o bem e o mal, o bom e
o mau, que não se confundem, mas, tantas vezes, se desemparelham. Adiamos o
trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista (o dentista nos
adia),a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma
agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do
automóvel, o concerto de Beethoven, o túnel para Niterói, a festa de
aniversário da criança, as relações com a China, tudo. Até o amor. Só a morte e
a promissória são, mais ou menos, pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio
para a promissória: o adiamento bi ou trimestral das reformas, uma instituição
sacrossanta no Brasil.
Quanto à morte, não devem ser
esquecidos dois poemas típicos do Romantismo: na “Canção do Exílio”, Gonçalves
Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, para
cá. Já Álvares de Azevedo tem aquele poema famoso, cujo refrão é
sintomaticamente brasileiro: “Se eu morresse amanhã...”. Como se vê, nem os
românticos aceitavam morrer hoje, postulando a Deus prazos mais confortáveis.
Sim, adiamos por força de um
incoercível destino nacional, do mesmo modo que, por obra do fado, o francês
poupa dinheiro, o inglês confia no Times, o português adora bacalhau, o alemão
trabalha com furor disciplinado, o espanhol se excita com a morte, o japonês
esconde o pensamento, o americano escolhe a gravata sempre mais colorida.
O brasileiro adia; logo, existe.
O brasileiro adia; logo, existe.
A divulgação dessa nossa capacidade
autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A
verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre
o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, encontrei, no fim do
volume, algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre
endereços de embaixadas e consulados, estatísticas, indicações culinárias, o
autor intercalou o seguinte tópico:
DES MOTS : Hier = ontem;
Aujourd’hui
= hoje;
Demain
= amanhã.
Le
seul important est le dernier.
A
única palavra importante é última.
Ora, esse francês astuto agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.
(Paulo
Mendes Campos)
Leia também:
"A última vez" – Fabrício Carpinejar
Cláudio Manuel da Costa – Poemas
"A flor no asfalto" — Otto LaraResende
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