A flor
no asfalto
Conheço essa estrada genocida, o começo da Rio-Petrópolis. Duvido que se encontre um trecho rodoviário ou urbano mais assassino do que esse. São tantos os acidentes que já nem se abre inquérito. Quem atravessa a avenida Brasil fora da passarela quer morrer. Se morre, ninguém liga. Aparece aquela velinha acesa, o corpo é coberto por uma folha de jornal e pronto. Não se fala mais nisso.
"Death and the woman". Käthe Kollwitz |
Teria sido o destino de dona Creusa, se não levasse nas entranhas a própria vida. Na pista que vem para o Rio, a 20 metros da passarela de pedestres, dona Creusa foi apanhada por uma Kombi. O motorista tentou parar e não conseguiu. Em seguida, veio um outro carro, um Apolo, e sobreveio o segundo atropelamento. A mesma vítima. Ferida, o ventre aberto pelas ferragens, deu-se aí o milagre.
Dona Creusa estava grávida e morreu na hora. Mas no asfalto, expelida com a
placenta, apareceu uma criança. Coberta a mãe com um plástico azul, um
estudante pegou o bebê e o levou para o acostamento. Nunca tinha visto um
parto na sua vida. Entre os curiosos, uma mulher amarrou o umbigo da
recém-nascida. Uma menina. Por sorte, vinha vindo uma ambulância. Depois de
chorar no asfalto, o bebê foi levado para o hospital de Xerém.
Dona Creusa, aos 44 anos, já era avó, mãe de vários filhos e viúva. Pobre,
concentração humana de experiências e de dores, tinha pressa de viver. E era
uma pilha carregada de vida. Quem devia estar ali era sua nora Marizete. Mas
dona Creusa se ofereceu para ir no seu lugar porque, grávida, não pagava
a passagem. Com o dinheiro do ônibus podia comprar sabão. Levava uma bolsa
preta, com um coração de cartolina vermelha.
No cartão estava escrito: quinta-feira. Foi o dia do atropelamento. Apolo é o
símbolo da vitória sobre a violência. Diz o poeta Píndaro que é o deus que põe
no coração o amor da concórdia. No hospital, sete mães disputaram o privilégio
de dar de mamar ao bebê. A vida é forte. E bela, apolínea, apesar de tudo. Por
que não?
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