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terça-feira, 27 de março de 2012

GOMES LEAL – POETA DE TRÊS FACES

GOMES LEAL

- António Duarte Gomes Leal nasceu em Lisboa, em 1848, e faleceu na mesma cidade, em 1921.
- Frequentou o Curso Superior de Letras, mas não o concluiu.
- Levou uma vida boêmia e desregrada, mas converteu-se ao catolicismo ao final da vida. Poeta de triste destino, morreu pobre e na miséria, vivendo de caridade alheia.
- Poesia oscilante entre três escolas literárias da segunda metade do séc. XX: o Romantismo, o Simbolismo e o Parnasianismo. Foi considerado ainda um precursor do Modernismo.
- Fez poemas de quase todos os tipos, inspirados em diversas tendências literárias.
- Poesia de cunho social, retratando a miséria e o desalento dos mais necessitados.
- Poesia satírica em que ironizava a corte, o clero, a burguesia e os costumes do povo português. Foi detido e cumpriu pena na prisão do Limoeiro por críticas ao rei D. Luís.
- Poesia romântica em que exaltava o amor e idealizava a mulher.
- Trabalhou ainda outros temas, como a religiosidade, o ocultismo, o pessimismo e a vida boêmia noturna de Portugal.

Ele se definia como sendo um poeta de três faces: 

Em mim há três coisas: o poeta popular e de combate, nas sátiras e panfletos; o poeta do sonho e do mistério, na 'Nevrose Noturna', nas 'Claridades do Sul', na 'Lua morta' e na 'Mulher de Luto'; e o poeta místico, na 'História de Jesus' e na 'Senhora da Melancolia'.




A um corpo perfeito

Nenhum corpo mais lácteo e sem defeito,
Mais róseo, escultural, ou feminino,
Pode igualar-se ao seu branco e divino
Imóvel, nu, sobre o comprido leito! -

Nada se lhe iguala! - O ferro do assassino
Podia, hoje, matá-la, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
Daquele corpo sem rival, perfeito.

Por isso é muito altiva e apetecida.
E o gozo sensual de a ver vencida
Há-de ser forte, estranho, singular...

Como o das coisas dignas de castigo
– ou qual amante sacerdote antigo,
Derrubando uma deusa d´um altar.

(Gomes Leal)

A jovem Miss

Ela é tão loura, lírica, franzina,
tão mimosa, quieta e virginal
como uma bela virgem dum missal,
toda dourada e preciosa e fina!

Não há graça mais casta e feminina
do que a dela! Seu riso angelical
cria em nós todo um mundo de moral,
melhor que tudo o que Platão ensina!

Por isso e pela sua castidade,
deve ser gozo intenso, na verdade,
sentir fundir-se em nós seus olhos régios!

E o gozo de a beijar trêmula, amante,
deve ser quase estranho e semelhante
ao de fazer terríveis sacrilégios!

(Gomes Leal)

Cantiga do Campo

Por que andas tu mal comigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!

Quando entre as mais raparigas
Vais cantando entre as searas,
Eu choro ao ouvir-te as cantigas
Que cantas nas noites claras!

Os que andam na descamisa
Gabam a viola tua,
Que, às vezes, ouço na brisa
Pelos serenos da lua.

E falam com tristes vozes
Do teu amor singular
Àquela casa onde coses,
Com varanda para o mar.

Por isso nada me medra,
Ando curvado e sombrio!
Quem me dera ser a pedra
Em que tu lavas no rio!

E andar contigo, ó meu pomo,
Exposto às chuvas e aos sóis!
E uma noite morrer como
Se morrem os rouxinóis!

Morrer chorando, num choro
Que mais as magoas consola,
Levando só o tesouro
Da nossa triste viola!

Por que andas tu mal comigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira! 

(Gomes Leal)

DE NOITE

Ele vinha da neve, dos trabalhos
violentos, custosos, da enxada,
cantando a meia voz, pelos atalhos.

A mulher, loura, infeliz, resignada,
cosia junto à luz. O rijo vento
batia contra a porta mal fechada.

Ao pé, havia um Cristo, um ramo bento
e uma estampa a Virgem, colorida,
cheia de mágoa, olhando o firmamento…

Portinari. "Duas mulheres e duas crianças".

Uma banca de pinho, mal sustida,
vacilante aos pés: um candeeiro,
companheiros daquela negra vida.

O homem, alto, pálido, trigueiro,
entrou. Tinha as feições queimadas, duras,
dos que andam com a enxada, o dia inteiro.

A mulher abraçou-o. As linhas puras
do seu rosto contavam já tristezas
de grandes e secretas amarguras.

Tinha chorado muito as estreitezas
daquela vida assim!… Talvez sonhado
um dia com palácios e riquezas!

Ele deitou-se a um canto, fatigado
de erguer-se, alta manhã, todos os dias,
mal voavam as pombas do telhado.

Lá fora, nuvens grossas e sombrias
no pesado horizonte. Ele assim esteve
– as noites eram ásperas e frias -

Ela cobriu-o duma manta leve,
esburacada, velha. No telhado
ouvia-se cair, sonora, a neve.

Ela então meditou no seu passado;
no seu primeiro beijo, nas lembranças,
talvez, do seu vestido de noivado,

e nas tardes das eiras, e das danças
às estrelas, e aquela vez primeira
que a rosa lhe furtou das longas tranças;

e aquela tarde, junto da amoreira,
que trocaram as mãos; e na janela;
e quando olhavam juntos; a ribeira;

e quando era tímida e singela…

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Lá fora, dava o vento nos caixilhos;
não brilhava no céu nem uma estrela.

E, àquela hora da noite, por que trilhos
andariam no mundo – ela cismava –
nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!…

Ele, na manta velha, ressonava.

(Gomes Leal)

Ao Leitor

Aqui, leitor sossegado,
- Velho burguês de outras eras! -
Depõe o livro de lado
- Não leias estas quimeras!

Não corras esta carteira
Meu velho amigo sem dentes!
Enquanto geme a lareira
- Sonha em mortos parentes!

Mas vós, amigos dos sonhos,
Doces, místicas violetas,
Castos selvagens tristonhos,
E solitários poetas,

Que amais as tristes paisagens
E as coisas misteriosas,
A longa chuva, as viagens,
E as melodias nervosas,

Nas longas noites de outono,
Que o vento varre a poeira,
E a chuva bate... – sem sono ! –
Folheai esta carteira.

(Gomes Leal)

O Selvagem

Gomes Leal
Eu não amo ninguém. Também no mundo
Ninguém por mim o peito bater sente,
Ninguem entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.

Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais calado que o esquife, a Morte e as lousas,
Selvagem, solitário, inerte e mudo,
- Passividade estúpida das Cousas.

Fechei, de há muito, o livro do Passado
Sinto em mim o desprezo do Futuro,
E vivo só comigo, amortalhado
N'um egoísmo bárbaro e escuro.

Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos cruéis indiferentes,
Meu peito é um covil, onde, às escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.

E não vejo ninguém. Saio somente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguém me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua...

(Gomes Leal, in "Claridades do Sul")

Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.

Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
enquanto o mar produz o monstro azulejado
e Deus, em cima, faz as verdes primaveras.

Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
e erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
talvez por um contrato irônico lavrado
que fiz e já não sei noutras sutis esferas.

A espada da Teoria, o austero Pensamento,
não mataram em mim o antigo sentimento,
embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...

E obedecendo ainda a meus velhos amores,
procuro em toda a parte a música das cores,
– e nas tintas da flor achei a Melodia.

(Gomes Leal)

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"Receita padrão de adultério" - Carlos Heitor Cony

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