Luzia-Homem
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta tijolos.
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha... (...)
Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.
- É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona - murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes. - Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha, alcoveta e curandeira de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem... (...)
- Deixem estar que há de ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês todas num chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar - disse chasqueando um soldado de linha, destacado no Curral do Açougue para manter a ordem, pois não raro rixavam e se engalfinhavam mulheres, ou se esboroavam homens por fúteis pretextos: houvera mesmo sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido estava naquela pobre gente o senso moral.
- Vão ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...
Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões doirados, o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouli da pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía, apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações da força. (...)
A insinuação de Romana ferira certo o alvo, e assanhara a secreta cupidez de Crapiúna, que não se conformava com os modos retraídos e a impassível frieza da mulher-homem, resistência passiva e calma, ante a qual se amesquinhava a sua fama e sentia arranhado o amor-próprio de vitorioso em fáceis conquistas. Sempre que a encontrava, dirigia-lhe, com saudações reverentes, palavras de ternura e erotismos incontinentes, olhares e gestos de desejos mal sofreados. E, tão frequentes se tornaram esses meios de obsessão, que um dia a moça os rebateu secamente, com firmeza inelutável:
- Deixe-me sossegada. Não se meta com a minha vida. Eu não sou o que o senhor supõe...
- Deixa-te de luxos, rapariga - respondeu Crapiúna, mostrando-lhe um grosso anel de ouro. - Olha a memória de ouro que tenho para ti... Não te zangues com o teu mulato...
Desde então entrou a acompanhá-la, a persegui-la por toda a parte, nas horas de trabalho na penitenciária, nas caminhadas ao rio e a rondar durante a noite pela vizinhança da casinha velha, lá para as bandas da Lagoa do Junco, onde ela morava com a mãe, velha e enferma, a boa, a santa tia Zefa.
Exasperada por essa obsessão afrontosa, cada vez mais ardente e descomedida, Luzia queixou-se ao administrador que obteve do tenente, comandante do destacamento, a remoção do temerário galante para outros serviços, guarda e faxina da prisão e, nos dias de folga, a polícia da feira.
O tão severo, merecido castigo penetrou fundo no duro coração do soldado, remexendo a vasa de instintos, ali sedimentada em demorado repouso. Mais ainda lhe moeram os melindres, os comentários irreverentes, os aplausos, as insinuações ferinas... (...)
Crapiúna sabia dessas más ausências, das calúnias e falsos testemunhos que lhe levantavam, cobardemente, pelas costas; das pragas e esconjuros, arrogados pelas suas vítimas e desafetos. Safados uns, ingratos outros. Corja de mal-agradecidos, que já se não lembravam dos benefícios de ontem. (...) seria, entretanto, melhor sair da obra por sua livre vontade e não por queixa... E logo de quem? De Luzia-Homem... Oh? o diabo daquela sonsa era capaz de virar pelo avesso o juízo de uma criatura, e provocar muita desgraça por causa daquele imposão de querer ser melhor que as outras... Tirando-lhe a força bruta, não passava de uma pobre tatu, que só tem por si o dia e a noite.
- Você está... - mas é fisgado pela macho e fêmea - arriscou o camarada Belota que lhe ouvia a confidência - Aquilo tem mandinga... Quem sabe se não te enfeitiçou!... Olha que ela tem uns olhos que furam a gente.. . E então - aquela cabeleira... Acho melhor pedir à Chica Seridó uma oração forte para desmanchar quebrantos e fechar o corpo contra mau olhado.
- Qual, o quê!... - retorquiu Crapiúna, com afetado desdém - Eu até nem gosto dela... Não lhe acho graça... Depois... com semelhante força... nem parece mulher...
- Tira o cavalo da chuva e conta a história direito, Crapiúna. Todas as mulheres são iguais e merecem tudo; a demora é grelar no coração o capricho, principalmente, quando resistem. Fora ela um monstro da natureza; paixão não enxerga nem repara e, quando nos ataca, é como o sarampo: até jasmim de cachorro é remédio. E deixa falar quem quiser, que é soberba, sonsa, mal-ensinada... Ela não é nenhum peixe podre. Não reparaste naqueles quartos redondos, no caculo do queixo. Na boca encarnada como um cravo?! E o buço?!... Sou caidinho por um buço... Ela quase que tem passa-piolho, o demônio da cabrocha...
- O que mais me admira é que não se diz dela tanto assim – afirmou Crapiúna pensativo, riscando com a unha do polegar a ponta do indicador.
- É por ser mais velhaca que as outras... Pergunta ao Alexandre...
- Que Alexandre? Aquele alvarinto que servia de apontador na obra: e passou depois para o armazém da Comissão?... Aquilo é defunto em pé. Não é qualidade de homem para um como eu.
- O caso é que ele gosta dela. Estão sempre perto um do outro, ao passo que o Crapiúna velho foi posto fora, como um cachorro tinhoso, e está aqui gemendo no serviço...
E como o soldado, em cujo coração se derramara fel, ficasse a cismar, Belota afastou-se com um gracejo ferino:
- Ali é ver com os olhos e comer com a testa ou lamber vidro de veneno por fora, como rato de botica. Toma o meu conselho. Não te metas com a bruxa que cheiras vara!
Crapiúna não o ouviu. Contorcendo-se no martírio de onça acuada, com o coração caldeado no peito, estremecia à suspeita de um rival venturoso na disputa da cobiçada presa.
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Cassiano Ricardo
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