VIII – O BRACELETE
O que Cecília viu, debruçando-se à janela, gelou-a de espanto
e horror.
De todos os
lados surgiam répteis enormes que, fugindo pelos alcantis, lançavam-se na
floresta; as víboras escapavam das fendas dos rochedos, e aranhas venenosas
suspendiam-se aos ramos das árvores pelos fios da teia.
No meio do
concerto horrível que formava o sibilar das cobras e o estrídulo dos grilos,
ouvia-se o canto monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo.
O índio tinha
desaparecido; apenas se via o reflexo da luz do facho.
Cecília, pálida
e trêmula julgava impossível que Peri não estivesse morto e já quase devorado
por esses monstros de mil formas; chorava o seu amigo perdido, e balbuciava
preces pedindo a Deus um milagre para salvá-lo.
Às vezes fechava
os olhos para não ver o quadro terrível que se desenrolava diante dela, e
abria-os logo para perscrutar o abismo e descobrir o índio
Em um desses
momentos um dos insetos que pululavam no meio da folhagem agitada esvoaçou, e
veio pousar no seu ombro; era uma esperança, um desses lindos coleópteros
verdes que a poesia popular chama lavandeira-de-deus.
A alma nos
momentos supremos de aflição suspende-se ao fio o mais tênue da esperança;
Cecília sorriu-se entre as lágrimas, tomou a lavandeira entre os seus dedos
rosados e acariciou-a.
Precisava
esperar; esperou, reanimou-se, e pôde preferir uma palavra ainda com a voz
trêmula e fraca:
— Peri!
No curto
instante que sucedeu a este chamado, sofreu uma ansiedade cruel; se o índio não
respondesse, estava morto; mas Peri falou:
— Espera,
senhora!
Entretanto,
apesar da alegria que lhe causaram estas palavras, pareceu à menina que eram
pronunciadas por um homem que sofria: a voz chegou-lhe ao ouvido surda e rouca.
— Estás ferido?
perguntou inquieta.
Não houve
resposta; um grito agudo partiu do fundo do abismo, e ecoou pelas fráguas;
depois a cauã cantou de novo, e uma cascavel silvando bravia passou seguida por
uma ninhada de filhos.
Cecília vacilou;
soltando um gemido plangente caiu desmaiada de encontro à almofada da janela.
Quando, passado
um quarto de hora, a menina abriu os olhos, viu diante dela Peri que chegava
naquele momento, e lhe apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retrós,
dentro da qual havia uma caixinha de velado escarlate.
Sem se importar
com a jóia, Cecília ainda impressionada pelo quadro horrível que presenciara,
tomou as mãos do índio e perguntou-lhe com sofreguidão:
— Não estás
mordido, Peri?... Não sofres?... Dize!
O índio olhou-a
admirado do susto que via no seu semblante.
— Tiveste medo,
senhora?
— Muito!
exclamou a menina.
O índio sorriu.
— Peri é um
selvagem, filho das florestas; nasceu no deserto, no meio das cobras; elas
conhecem Peri e o respeitam.
(...)
Tinha-lhe
bastado a luz do seu facho e o canto da cauã que ele imitava perfeitamente para
evitar os répteis venenosos que são devorados por essa ave. Com este simples
expediente de que os selvagens ordinariamente se serviam quando atravessavam as
matas de noite, Peri descera e tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos
de uma trepadeira a bolsa de seda (...)
Entretanto
Cecília que não podia compreender como um homem passava assim no meio de tantos
animais venenosos sem ser ofendido por eles, atribuía a salvação do índio a um
milagre, e considerava a ação simples e natural que acabava de praticar como um
heroísmo admirável. (...)
A caixinha
continha um simples bracelete de pérolas; mas estas eram do mais puro esmalte e
lindas como pérolas que eram; bem mostravam que tinham sido escolhidas pelos
olhos de Álvaro, e destinadas ao braço de Cecília.
A menina
admirou-as um momento com o sentimento de faceirice que é inato na mulher, e
lhe serve de sétimo sentido; pensou que devia ir-lhe bem esse bracelete; levada
por esta idéia cingiu-o ao braço, e mostrou a Peri que a contemplava satisfeito
de si mesmo.
— Peri sente uma
coisa.
— O quê?
— Não ter contas
mais bonitas do que estas para dar-te.
— E por que
sentes isso?
— Porque te
acompanhariam sempre.
Cecília sorriu;
ia fazer uma travessura.
— Assim, tu
ficarias contente se tua senhora em vez de trazer este bracelete, trouxesse um
presente dado por ti?
— Muito.
— E o que me dás
tu para que eu me faça bonita? perguntou a menina gracejando.
O índio correu
os olhos ao redor de si e ficou triste; podia dar a sua vida, que de nada
valia; mas onde iria ele, pobre selvagem, buscar um adorno digno de sua
senhora!
Cecília teve
pena do seu embaraço.
— Vai buscar uma
flor que tua senhora deitará nos seus cabelos, em vez deste bracelete que ela
nunca deitará no seu braço.
Estas últimas
palavras foram ditas com um tom de energia, que revelava a firmeza do caráter
desta menina; ela fechou outra vez o bracelete na caixa e ficou um momento
melancólica e pensativa.
Peri voltou
trazendo uma linda flor silvestre que encontrara no jardim; era uma parasita
aveludada, de lindo escarlate. A menina prendeu a flor nos cabelos, satisfeita
por ter cumprido um inocente desejo de Peri, que só vivia para cumprir os seus;
e dirigiu-se ao quarto de sua prima, ocultando no seio a caixinha de veludo.
(José de Alencar, in “O Guarani”)
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