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domingo, 23 de fevereiro de 2014

“O primo Basílio” – Eça de Queirós

O primo Basílio

Luísa desceu o véu branco, calçou devagar as luvas de peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou; fez "ah!" toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Basílio. 
Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados: — ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: — Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela?
Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no ministério; disseram 4h e que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...
— Como tu estás mudada, Santo Deus!
— Velha.
— Bonita!
— Ora!
E ele, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Ele no sofá muito languidamente; ela ao pé, pousada de leve à beira de uma poltrona, toda nervosa.
Tinha deixado o "degredo" — disse ele. — Viera respirar um pouco à velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O último ano em Paris! — Vinha de lá, daquela aldeola de Paris! — Falava devagar, recostado, com um ar íntimo, estendendo sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.
Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto anelado havia agora alguns fios brancos; mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos quando ria, a mesma doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!
— Mas tu, conta-me de ti! — dizia ele com um sorriso, inclinado para ela. — És feliz, tens um pequerrucho...
— Não — exclamou Luísa rindo. — Não tenho! Quem te disse?
— Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
— Três, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes, palrar um momento, pela manhã...
— Pudera não! És o único parente que tenho agora...
Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade melancólica; falaram da mãe de Luísa, a "tia Jojó", como lhe chamava Basílio. Luísa contou a sua morte muito doce, na poltrona, sem um ai...
Onde está sepultada? — perguntou Basílio com uma voz grave; e acrescentou puxando o punho da camisa de chita: — Está no nosso jazigo?
— Está.
— Hei de ir lá. Pobre tia Jojó! Houve um silêncio.
— Mas tu ias sair! - disse Basílio de repente, querendo erguer-se.
— Não! - exclamou. - Não! Estava aborrecida, não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já. Ele ainda disse:
— Não te prendas...
— Que tolice! Ia à casa de uma amiga passar um momento.
Tirou logo o chapéu; naquele movimento, os braços erguidos repuxaram o colete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente.
Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçar as luvas:
— Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu...
Ela riu-se.
— Decerto que não...
Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:
— Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira ideia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipoia e ir lá; queria ir ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? Ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...
Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro; sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.
— A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! — disse Basílio; e fitando-a: — Lembraste das nossas partidas de bilhar?
Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele; disse sorrindo:
— Éramos duas crianças!
Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete; parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
— Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ela via a sua cabeça bem feita, descaída naquela melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos - que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fora sempre o seu desejo viajar — dizia — ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...
— Estás muito valente! - disse Basílio. — Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada.
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali ás vezes, pelos cantos, beijos furtados... (...)

(Trecho do capítulo III de “O primo Basílio”, Eça de Queirós)


Leia também:

"Meus oito anos" - Casimiro de Abreu
"O milagre das folhas" - Clarice Lispector
"Encontro com Bandeira" - Affonso Romano de Sant´Anna
"O amor é reciclável" - Moacyr Scliar


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2 comentários:

  1. Agora quero ler esse livro.
    Se essa foi a sua intenção Professor Maurício... Conseguiu.rss

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  2. Olá, Margareth! É uma das intenções, sem dúvida. E só por saber que você irá lê-lo, já fico muito feliz. Grande beijo.

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