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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Miguel Torga - Poemas

Miguel Torga

Perfil

Não. Não tenho limites. 
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos tão naturais
À minha condição,
Que quando, por exceção,
Os não pratico
É que me mortifico.

Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.

(Miguel Torga)

Alvo

O arco, a corda e a seta..
Mas erraste,
Poeta!
Em vez de ser no coração do mundo
Que acertaste,
Foi o teu que rasgaste.

E tão frágil que ele era!
Rubra quimera
Aberta à desventura
Do eterno desdém,
Pedia aquele cuidado que se tem
Junto dum berço ou de uma sepultura.

Mas desferiste o golpe enraivecido,
Sem reparar
Que o agressor é sempre o agredido,
Quando agride a cantar.”

(Miguel Torga)

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

(Miguel Torga)

Sísifo

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
"Sísifo". Tiziano.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

(Miguel Torga, in "Diário XIII")

Para a manhã

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?

Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado.
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!

(Miguel Torga)

Alentejo

A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...
(Miguel Torga)

Poema Melancólico a não sei que Mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anônimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

(Miguel Torga, in "Diário VII")

Apocalipse

É o cavalo do tempo a galopar…  
"Time reveals the Truth". Theodor Van Thulden
Ninguém pode detê-lo.
Vê-lo,
É ver, a sonhar,
Um relâmpago a rasgar
O céu dum pesadelo.

Deixa a desolação por onde passa.
Torna os sonhos mansinhos.
Desmente os adivinhos
Que, na divina graça
De feiticeiras alucinações,
Prometem duração às ilusões.

Besta infernal,
Com asas de morcego
E raiva desbocada,
Largou do prado onde pastava ausente,
E corre, corre, em direção ao nada,
Única direção que a fúria lhe consente.

(Miguel Torga, in Câmara Ardente -1962)


Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

(Miguel Torga, in "Odes")


À Beleza

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,  
"Unexpected light". Josef Kote.


Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

(Miguel Torga, in “Odes”)

www.veredasdalingua.blogspot.com.br
Leia também:

"Quinze anos" - Carlos Heitor Cony
"A Arte de Ser Feliz" - Cecília Meireles
Olavo Bilac - O Príncipe dos Poetas Brasileiros


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2 comentários:

  1. O personagem da mitologia grega, além de inspirar Miguel Torga, foi tema ainda de um mais famosos textos de Albert Camus.

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  2. Na mitologia grega, Sísifo foi condenado pelos Deuses a rolar uma imensa pedra morro acima todos os dias. Ao chegar perto do cume, a pedra rolava e no outro dia ele era obrigado a executar a tarefa novamente, e assim foi por toda a eternidade. Chama-se "Trabalho de Sísifo" a tarefa que envolve esforços inúteis, vãos. E certos autores veem no mito de Sísifo o mito do "Eterno Recomeço". O livro de Camus é um ensaio filosófico que se chama justamente "O Mito de Sísifo".

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