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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Texto - "Defenestração" - Luis Fernando Verissimo

Defenestração 


   Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias com todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
    Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se complicaria. 
    - Os hermeneutas estão chegando!
    - Ih, agora que ninguém vai entender mais nada… 
    Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. 
    - Alô...
    - O que é que você quer dizer com isso?
    Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
    - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
    Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
    Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
    A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
    - Defenestras?
    A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
    Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
    Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração..” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
    - Aquele é um defenestrado.
    Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
    Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
    Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
    Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
   Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
    - Les defenestrations. Devem ser proibidas.
    - Sim; monsieur le Ministre.
    - São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
    - Sim, monsieur le Ministre.
    - Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
    Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
    - É esta estranha vontade de jogar alguém ou algo pela janela, doutor…
    - Hmm, O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando se da janela.
    Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
    Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
    - Querida...
    - Mmmm?
    - Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
    - Fala, amor.
    - Sou um defenestrador.
    E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
    - Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
    Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
   - Fui defenestrado...
    Alguém comenta:
    - Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
    Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

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