ANTÓNIO NOBRE
Vovó contando histórias. Ilustração de Gustave Doré. |
Continua
a tempestade
Aqui,
sobre estas águas cor de azeite,
Cismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, à noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite...
Aqui, não tenho um único deleite!
Talvez... baixando, em breve, à água fria,
Sem um beijo, sem uma Ave-Maria,
Sem uma flor, sem o menor enfeite...
Ah! Pudesse eu voltar à minha infância!
Lar adorado, em fumos, a distância,
Ao pé de minha irmã, vendo-a bordar...
Minha velha aia! Conta-me essa história
Que principiava, tenho-a na memória,
«Era uma vez...» Ah... deixem-me chorar!
Cismo em meu lar, na paz que lá havia:
Carlota, à noite, ia ver se eu dormia
E vinha, de manhã, trazer-me o leite...
Aqui, não tenho um único deleite!
Talvez... baixando, em breve, à água fria,
Sem um beijo, sem uma Ave-Maria,
Sem uma flor, sem o menor enfeite...
Ah! Pudesse eu voltar à minha infância!
Lar adorado, em fumos, a distância,
Ao pé de minha irmã, vendo-a bordar...
Minha velha aia! Conta-me essa história
Que principiava, tenho-a na memória,
«Era uma vez...» Ah... deixem-me chorar!
(António
Nobre)
Desobriga
Desobriga
Os meus pecados, Anjo! Os meus pecados!
Contar-tos para quê, se não têm fim?
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim.
Contar-tos para quê, se não têm fim?
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim.
A ti acendo sírios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando sofro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando sofro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!
Que eu seja puro de alma e pensamento!
E que, em dia do grande Julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:
E que, em dia do grande Julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:
Pois tenho (que o Céu aponta e marca)
Um processo a correr nessa comarca,
Cujo delegado é Nosso Senhor…
Um processo a correr nessa comarca,
Cujo delegado é Nosso Senhor…
(António Nobre)
O
meu condado
No
campo azul da alada fantasia
Edifiquei outr'ora, por meu mal,
Castelos de oiro, esmalte e pedraria,
Torres de lápis-lazúli e coral.
N'uma extensão de léguas, não havia
Quem possuísse outro domínio igual:
Tão belo, assim tão belo, parecia,
O território de um senhor feudal...
Um dia (não sei quando, nem sei d'onde),
Um vento agreste de indiferença e spleen
Lançou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado - o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso conde,
N'aquela idade em que é conde assim...
Edifiquei outr'ora, por meu mal,
Castelos de oiro, esmalte e pedraria,
Torres de lápis-lazúli e coral.
N'uma extensão de léguas, não havia
Quem possuísse outro domínio igual:
Tão belo, assim tão belo, parecia,
O território de um senhor feudal...
Um dia (não sei quando, nem sei d'onde),
Um vento agreste de indiferença e spleen
Lançou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado - o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso conde,
N'aquela idade em que é conde assim...
(António
Nobre)
Sê
de pedra
Não
reparaste nunca? Pela aldeia,
Nos
fios telegráficos da estrada,
Cantam
as aves, desde que o sol nada,
E,
à noite, se faz sol a luz cheia...
No
entanto, pelo arame que as tonteia,
Quanta
tortura vai, n´uma ânsia alada!
O
ministro que joga uma cartada,
Alma
que, às vezes, d´além-mar anseia:
—Revolução
— Inútil. — Cem feridos,
Setenta
mortos. — Beijo-te! — Perdidos!
—Enfim,
feliz! —! — Desesperado. — Vem!
E
as lindas aves, bem se importam elas!
Continuam
cantando, tagarelas:
Assim,
António, deves ser também.
(António
Nobre)
Paz
E
a vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil. Tudo é ilusão.
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!
Mas a arte, o lar, um filho, António? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição.
Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva...essa que traz.
Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da morte e que se chama A PAZ!
Esforço inútil. Tudo é ilusão.
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!
Mas a arte, o lar, um filho, António? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição.
Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva...essa que traz.
Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da morte e que se chama A PAZ!
(António
Nobre, in “Só”)
"A morte de Ofélia". John Everett Millais. |
Morreu. Vai a dormir, vai a sonhar... Deixá-la!
(Falai baixinho: agora mesmo se ficou...)
Como Padres orando, os choupos formam ala,
Nas margens do ribeiro onde ela se afogou.
Toda de branco vai, nesse hábito de opala
Para um convento: não o que Hamlet lhe indicou,
Mas para um outro, olhai! que tem por nome "Vala",
De onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!
O doce Pôr-do-Sol, que era doido por ela,
Que a perseguia sempre, em palácio e na rua,
Vede-o, coitado! mal pode suster a vela...
Como damas de honor, Ninfas seguem-lhe os rastros,
E, assomando no Céu, sua Madrinha, a Lua,
Por ela vai desfiando as suas contas, Astros!
(António Nobre)
Meus
dias de rapaz, de adolescente,
Abrem
a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam
vagarosos, como os Rios,
Sucedem-se
uns aos outros, igualmente.
Nunca
desperto de manhã, contente.
Pálido
sempre com os lábios frios,
Ora,
desfiando os meus rosários pios...
Fora
melhor dormir, eternamente!
Mas
não ter eu aspirações vivazes,
E
não ter como têm os mais rapazes,
Olhos
boiados em sol, lábio vermelho!
Quero
viver, eu sinto-o, mas não posso:
E
não sei, sendo assim enquanto moço,
O
que serei, então, depois de velho.
(António
Nobre)
Elegia
Ó
virgens que passais, ao sol poente,
Pelas
estradas ermas, a cantar:
Eu
quero ouvir uma canção ardente
Que
me recorde as afeições do lar.
Cantai-me,
nessa voz onipotente,
O
sol que tomba, aureolando o mar,
A
fartura da seara reluzente,
O
vinho, a graça, a formosura, o luar!
Cantai,
cantai as límpidas cantigas!
Das
ruínas do meu lar desenterrai
Todas
aquelas ilusões antigas
Que
eu vi morrer num sonho como um ai...
Ó
suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me
n´essa voz... Cantai!
(António
Nobre)
"A jovem mártir". 1855. Paul Delaroche. |
Santa
Cecília
(sobre
um quadro de Delaroche)
Num
rio virginal de águas puras e mansas
Pequenino
baixel, a Santa vai boiando.
Dilui-se
pouco a pouco o oiro de suas tranças
E
vai suavemente as águas aloirando.
Circunda-a
um esplendor luzente de esperanças
Unge-lhe
a face um luar sereno, untuoso e brando.
E
com a graça eterna e meiga das crianças
Santa
Cecília vai boiando, vai boiando.
Os
cravos e os jasmins abrem à luz da luta
E
ao verem-no passar, fantástica barquinha,
Murmuram
entre si: É um marmor que flutua!
Ela
entra, enfim, no Oceano… E escuta-se, ao luar,
A
mãe do pescador rezando a ladainha
Pelos
que andam, Senhor! sobre as águas do Mar…
(António
Nobre, in “Revista Coleção da Semana”, 1885)
Santa
Iria
(que
floresceu em Nabância no século VII)
Pequenino
baixel, a Santa vai boiando.
Pouco
e pouco, dilui-se o oiro das suas tranças
E,
diluído, vê-se as águas aloirando.
Circunda-a
um resplandecer de verdes Esperanças.
Unge-lhe
a fronte o luar (os Santos-Óleos) brando.
E,
com a Graça etérea e meiga das crianças
Formosa
Iria vai boiando, vai boiando…
Os
cravos e os jasmins à luz da Lua,
E,
ao verem-na passar, fantástica branquinha,
Murmuram
entre si: «É um marmor que flutua!»
Ela
entra, enfim, no Oceano... E escuta-se, ao luar,
A
mãe do Pescador, rezando a ladainha
Pelos
que andam, Senhor! sobre as águas do Mar…
(António
Nobre, in “Só”)
Menino
e moço
Tombou
da haste a flor da minha infância alada,
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
Julguei
que fosse eterna a luz dessa alvorada
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo de prata embutido a marfim!
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo de prata embutido a marfim!
Mas,
hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, à distância!
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, à distância!
Debalde
clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...
(António
Nobre)
ps. A se destacar a semelhança desse poema com o
famosíssimo “As pombas”, de Raimundo Correia. Muito provavelmente mera
coincidência, dada a proximidade das datas dos poemas: “As pombas” é de 1883, enquanto “Menino e moço” é de 1885.
Leia também:
“O pavão” – Rubem Braga
Ivan Junqueira - Poemas
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