O
grande clandestino
Eu
me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego
às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa
escondido. Mas que velocidade!
"The ages of life" - Georges Lacombe |
Sempre
pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu
queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo
todo íntimo e não disponho de tribunas.
Além
do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se
pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O
que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a
disfarçar a evidência de suas metamorfoses.
É
de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O
tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora.
Isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com
ele, façamos dele um aliado.
Aí,
sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e
esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita
para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.
O
tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu
para sempre e se esqueceu.
Em
verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes
onde parece pernoitar.
Rói
as pedras como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira é a extrema
delicadeza com que pratica essas violências.
Todos
falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de
velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando
o esperamos na solidão!
Meu
mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocá-lo.
Fico horas à janela vendo-o passar. É um
vício.
Oh,
como se diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma
catedral – tanto faz.
O
desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É
claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa morta...
Franqueza,
nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo
não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer
maneira.
E
é até possível que não exista.
Seu
propósito evidente é envelhecer o mundo.
Mas
a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.
(Aníbal
Machado, in "Cadernos de João")
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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