Primeiras leituras
A
primeira sentença cujo segredo consegui decifrar até o fim dava a mim uma importância
que a psicanálise explica: "A bola é de Paulo". Estava escrito debaixo
do cartão colorido, na parede do primeiro ano primário do Grupo Barão do Rio
Branco. Naquele tempo, o trabalho maior da professora era fazer com que
olhássemos para a parte inferior do cartão, onde estavam as letras misteriosas,
e não para cima, onde se estampava a figura do menino de calção azul e do
cachorrinho correndo atrás da bola, vendo-se mais longe uma casa rodeada de
árvores e de cuja chaminé saía uma fumacinha feliz. Aprender é uma mutilação.
"The Severe Teacher" - Jan Steen |
Só
no quarto ano trocamos os livros ilustrados por um volume mais grosso, sem enfeites:
era a antologia de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Já a essa altura, sem contar as
silabadas, líamos correntemente. Mistério era descobrir por que motivo tanta
gente havia escrito tanta coisa sem graça. Logo na primeira página, embirrei
com o tal de Machado de Assis. Aquele lobriguei luz por baixo da porta me
aborreceu. Lobriguei lembrava lombriga; lombriga lembrava vermífugo... Não
topei Machado de Assis, a não ser aquele diabo velho, sentado entre dois sacos
de moedas.
No
exame de admissão, tive a sorte de ler e analisar gramaticalmente um trecho de
Coelho Neto que sabia de cor: "Selva augusta, de velhos troncos intactos,
jamais ferida pelo gume dos ferros...".Veio depois o ginásio, no qual
considerava o florilégio um livro à parte, encapado no papel mais bonito, para
contrabalançar o volume de matemática de Jácomo Stavale. Eram as flores que
enfeitavam as horas de estudo, compridas e desertas Com o tempo, Machado de
Assis foi melhorando de estilo e de ideias. Vez por outra, no entanto, dava
para escrever frases intransponíveis como esta: "O destino é o seu próprio
contrarregra". Durante muitos anos, todas as vezes que deixava de entender
uma situação, repetia comigo a fórmula incompreensível: "O destino é o seu
próprio contrarregra"! Duro era encontrar motivos que justificassem nossa
admiração por Rui Barbosa, o homem mais inteligente do mundo. Bonito mesmo era
a última corrida de touros em Salvaterra, que não é de Alexandre Herculano,
como lembram os ingratos, mas de Rebelo da Silva. Bonito era o sertanejo, antes
de tudo, um forte. Bonito era o suave milagre ("longos são os caminhos da
Galiléia e curta a piedade dos homens").
Quase
tão bonito era o cerco de Leyde, com aquela dúvida atroz, que permaneceu até
hoje, de saber se o mar era o único túmulo digno de um almirante bátavo ou
batavo. Bonito era a virgem dos lábios de mel. Bonito foi o descobrimento de O
coração de d'Amicis. Bonito foi quando achei na antologia de Carvalho Mesquita uma
poesia esquisita, a história de uma boneca de olhos de conta cheinha de lã, que
rolou na sarjeta e foi levada pelo homem do lixo, coberta de lama, nuinha, como
quis Nosso Senhor; Jorge de Lima foi o meu primeiro frisson nouveau. Feio foi o
que veio depois. A vida não é antológica, não tem gramática, não tem adjetivos
bonitos, não tem pontuação. Foi o que aprendi um século mais tarde em um livro
besta.
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Nosaaa precisava desta crônica para um trabalho e não tinha o livro, esse site me salvou! Obrigada aí gente!!
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