Aprendendo das
cozinheiras
A
se acreditar em entendidos em coisas de outros mundos, já devo ter sido
cozinheiro em alguma vida passada. É que tenho um fascínio enorme pelas
panelas, pelo fogo, pelos temperos e por toda a bruxaria que acontece nas
cozinhas, para a produção das coisas que são boas para o corpo. Não é só uma
questão de sobrevivência. Os cozinheiros dos meus sonhos não se parecem com
especialistas em dietética.
"Fish and oysters". 1864. Manet. |
Interessa-me
mais o prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a
tampa da panela, para ver o que está lá dentro. Minhas cozinhas, em minhas
fantasias, nada têm a ver com estas de hoje, modernas, madeiras sem a memória
dos cortes passados e das coisas que se derramaram, tudo movido a botão, forno
de micro-ondas, adeus aos jogos eróticos preliminares de espiar, cheirar,
beliscar, provar, perfurar... Tudo rápido, tudo prático, tudo funcional.
Imaginei que quem assim trata a cozinha, no amor deve ser semelhante aos galos
e galinhas, quanto mais depressa melhor, há coisas mais importantes a se fazer.
Como aquele vendedor de pílulas contra a sede, da estória do "Pequeno
Príncipe". Ir até o filtro é uma perda de tempo. Com a pílula elimina-se a
perda inútil. “E que é que eu faço com o tempo que eu perco?" — perguntou
o Principezinho.
"...Você
faz o que quiser", respondeu o vendedor." — Que bom! Então, é isto o
que vou fazer, ir bem devagarzinho, mãos nos bolsos, até a fonte, beber
água..."
Quero
voltar à cozinha lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida
e do prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto,
testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali.
Nada
melhor que o contraste. A sala de visitas, por exemplo. Lá no interior de
Minas, faz tempo. Retrato silencioso oval do avô, na parede; samambaia no
cachepô de madeira envernizada; porta-bibelôs; as cadeiras, encostos verticais,
90 graus, para que ninguém se acomodasse; capas brancas engomadas pra que
nenhuma cabeça brilhantinosa se encostasse; os donos dizendo em silêncio
"está mesmo na hora", enquanto a boca mente dizendo "ainda é
cedo", na hora da partida, junto com as recomendações à tia Sinhá (porque
toda família tinha de ter uma tia Sinhá). Aí a porta se fechava, e a vida
recomeçava, na cozinha...
A
porta da rua ficava aberta. Era só ir entrando. Se não encontrasse ninguém não
tinha importância, porque em cima do fogão estava a cafeteira de folha, sempre
quente, para quem quisesse. Tomava-se o café e ia-se embora, havendo recebido o
reconforto daquela cozinha vazia e acolhedora. Eu diria que a cozinha é o útero
da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer acontece, quente... Tudo provoca o
corpo e sentidos adormecidos acordam. São os cheiros de fumaça, da gordura
queimada, do pão de queijo que cresce no forno, dos temperos que
transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz e do cérebro, até o lugar
onde mora a alma. Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher
para a prova, enquanto o ouvido se deixa embalar pelo ruído crespo da fritura e
os olhos aprendem a escultura dos gostos e dos odores nas cores que sugerem o
prazer...
Cozinha:
ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para
sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. A pura utilidade
alimentar, coisa boa para a saúde, pela magia da culinária, se torna arte,
brinquedo, fruição, alegria. Cozinha, lugar dos risos...
Pensei
então se não haveria algo que os professores pudessem aprender com os
cozinheiros: que a cozinha fosse a antecâmara da sala de aulas, e que os
professores tivessem sido antes, pelo menos nas fantasias e nos desejos,
mestres-cucas, especialistas, nas pequenas coisas que fazem o corpo sorrir de
antecipação. Isto. Uma Filosofia Culinária da Educação. Imaginei que os professores,
acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mão, haveriam de se
ofender, pensando que isto não passa de uma gozação minha.
Logo
me tranquilizei, ouvindo a sabedoria de Ludwig Feuerbach, a quem até mesmo Marx
prestou atenção: "O homem é aquilo que ele come". Abaixo Descartes.
Ideias claras e distintas podem ser boas para o pensamento. Também bombas
atômicas e as contas do FMI são boas para serem pensadas. Só que não podem ser
amadas, não têm gosto e nem cheiro, e por isto mesmo a boca não as saboreia e
não entram em nossa carne.
Imitar
os que preparam as coisas boas e ensinam os sabores...
A
primeira lição é que não há palavra que possa ensinar o gosto do feijão ou o
cheiro do coentro. É preciso provar, cheirar, só um pouquinho, e ficar ali,
atento, para que o corpo escute a fala silenciosa do gosto e do cheiro.
Explicar o gosto, enunciar o cheiro; pra estas coisas a Ciência de nada vale; é
preciso sapiência, ciência saborosa, para se caminhar na cozinha, este lugar de
saber-sabor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. "— Vamos, prove, veja como está
bom..." Palavras que não transmitem saber, mas atentam para um sabor. O
que importa está para além da palavra. É indizível. Como ele seria tolo se
avaliasse seus alunos por meio de testes de múltipla escolha. É assim com a
vida inteira, que não pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre
Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta
relação amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que
se pode saborear, como numa refeição eucarística, os pratos que o mestre
preparou com a sua própria carne...
A
lição dois é que o prazer do gosto e do cheiro não convivem com a barriga
cheia. O prazer cresce em meio às pequenas abstenções, às provas que só tocam a
língua... É aí que o corpo vai se descobrindo como entidade maravilhosamente
polimórfica na sua infindável capacidade para sentir prazeres não pensados. Já
os estômagos estufados põem fim ao prazer, pedem os digestivos, o sono e a
obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem sobre o prazer. A comida se produz
às dezenas de quilos. Pouco importa que os corpos sorriam. Comida combustível.
Que os corpos continuem a marchar. Melhor se fossem pílulas. Abolição da
cozinha, abolição do prazer: pura utilidade, zero de fruição.
"—
Estava boa a comida?"
"—
Ótima. Comi um quilo e duzentas gramas..."
Equação
desejável, pela redução do prazer à quantidade de gramas. Não deixa de ser uma
Filosofia... Como aquela que desemboca nos cursinhos vestibulares e já se
anuncia desde a primeira série do primeiro grau. Não se trata da erotização do
corpo. Para a engorda tais sensibilidades são dispensáveis. Artifício na
criação de gansos, para a obtenção de fígados maiores: funis goelas abaixo e
por ali a comida sem gosto. Afinal, por que razão o prazer de um ganso seria
importante? Seus donos sabem o que é melhor para eles... Vi nossos moços assim,
funis goela abaixo, e depois vomitando e pensando o seu vômito. A isto se chama
ver quantos pontos se fez no vestibular...
Entendem
por que eu queria uma filosofia culinária de educação? É que temos tornado os
criadores de ganso como modelos...
(Rubem Alves)
Leia também:
"Ô de casa" — Cora Coralina"De que ri a Mona Lisa?" — Affonso Romano de Sant´Anna
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