Tema
de redação – UERJ – 2010
Texto I
O
texto a seguir é um fragmento da entrevista realizada pela Frente Parlamentar
em Defesa do Trânsito Seguro com o escritor e jornalista Laurentino Gomes.
Como
a questão da transgressão das leis está relacionada com a história do Brasil?
A
transgressão das leis existe em qualquer sociedade, produto da tensão entre as
necessidades individuais e os interesses coletivos, mas no Brasil o fenômeno se
agrava por razões históricas. O Brasil tem uma história de tutelagem e
controle, marcada pelo analfabetismo, a pobreza e a falta de cultura, na qual a
grande maioria da sociedade não foi chamada a participar da elaboração das leis
e da construção das instituições nacionais.
Até
1808, ano da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, o Brasil era uma
colônia atrasada, ignorante e proibida, em que 98% dos habitantes eram
analfabetos. Não havia ensino superior e imprensa.
A
circulação de livros era censurada e o direito de reunião para discutir ideias,
proibido. De cada três brasileiros, um era escravo. (...) A herança de exclusão
se perpetua depois da Independência. A nossa primeira constituição, a de 1824,
foi outorgada, ou seja, imposta de cima para baixo. Durante o período monárquico,
um pequeno grupo ilustrado tentava conduzir os destinos de todo o resto
constituído por uma enorme massa de analfabetos e destituídos. Na República, o
fenômeno se repete em inúmeros golpes, quarteladas e ditaduras, em que
novamente alguns grupos mais privilegiados tentam tutelar todos os demais.
E
qual o resultado disso?
O
resultado é uma relação de estranheza entre a sociedade, o estado e as
instituições que ele representa. Construímos uma cultura transgressora, incapaz
de pactuar caminhos e soluções para seu futuro, em que os interesses
individuais ou de grupos se sobrepõem ao do conjunto da sociedade. A
transgressão das leis é um reflexo dessa herança histórica.
Na
sua opinião, por que o brasileiro não respeita as leis de trânsito quando não
está sendo fiscalizado?
Ainda
não conseguimos incorporar por completo em nossa sociedade o conceito de
civilização, que se caracteriza pelo respeito nas relações pessoais e pela
predominância dos interesses coletivos sobre os individuais. (...) As pessoas
só vão respeitar as leis e as instituições quando se reconhecerem nelas. E,
para isso, é necessário que participem de sua construção. Mas há também um
problema sério de impunidade.
No
fundo, as pessoas sabem que o estado é ineficiente e permeável à corrupção.
Quem comete um delito tem grandes chances de não ser punido. Há, portanto, um
cálculo de custo-benefício nas infrações. Como resultado da impunidade, a
chance de alguém “furar” um sinal de trânsito e não ser punido é bastante grande.
Portanto, do ponto de vista do infrator, vale a pena arriscar.
(...)
por que temos leis tão boas (na teoria) e muitas vezes pecamos na prática?
Há
uma enorme dose de hipocrisia nas relações entre a sociedade brasileira e suas
instituições. As pessoas criticam a corrupção, a ineficiência e falta de
transparência no governo, por exemplo, mas não agem de forma muito diferente
nas suas vidas particulares. O mesmo cidadão que critica a corrupção e a troca
de favores no Congresso Nacional e acha que todos os políticos são corruptos
por natureza, às vezes topa oferecer uma “caixinha” para o policial rodoviário
que o flagrou fazendo uma ultrapassagem proibida. É como se houvesse nas
relações individuais uma ética superior às coletivas, expressadas na política e
no funcionamento das instituições, o que não é verdade.
Na
prática, as instituições nacionais são um espelho da média da sociedade
brasileira. O Congresso Nacional nunca será mais corrupto ou menos corrupto do
que a média da sociedade brasileira. Deputados e senadores corruptos não caem
do céu, mas são eleitos por eleitores que, por ignorância ou convicção, aceitam
a prática da corrupção. (...)
Texto II
O
fragmento abaixo compõe um livro que recria, pela ficção, a Bahia do século
XVII e tem como personagem central o poeta Gregório de Matos.
“Esta
cidade acabou-se”, pensou Gregório de Matos, olhando pela janela do sobrado, no
terreiro de Jesus. “Não é mais a Bahia. Antigamente, havia muito respeito.
Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos
granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista.” (...)
Às
seis horas da manhã, o governador Antonio de Souza de Menezes saiu do palácio.
Cruzou a praça central onde ficavam os edifícios da administração: a sede do
governo, a prisão, a Câmara, o Tribunal e o Armazém Real. Dirigiu-se à igreja
dos jesuítas, para o sacramento da penitência. Gostava de fazê-lo de manhã.
Tinha seu padre confessor, da ordem dos franciscanos, mas considerava os
jesuítas mais preparados para a orientação religiosa.
Muitas
vezes, ao ajoelhar-se aos pés do sacerdote para fazer suas revelações, gostava
de imaginar que quem estava inquirindo seus pecados era o padre Antonio Vieira.
Eram suas supremas confissões. Falava sobre todas as iniquidades,
transgressões, violações que cometera. (...)
As
pessoas que caminhavam pela praça naquele momento eram, na maioria, negros
escravos ou mestiços trabalhadores. Muitos iam para as igrejas. Os sinos
chamavam, repicando. (...)
Os
homens, mesmo dentro da igreja, andavam armados de espadas e cotós limpos. Tudo
naquela cidade dependia da força pessoal. Já não se enforcavam mais tão
comumente os ladrões e os assassinos, tampouco os falsários e os maldizentes.
Não havia grandes assaltantes na Bahia, diziam, mas quase todos furtavam um
pouquinho. Alguns salteadores de estradas, raros ladrões violentos ou
cortadores de bolsas andavam por ali, porém uma desonestidade implícita e
constante fazia parte do procedimento das pessoas. Negros fugidos tornavam as
estradas e certas ruas mais perigosas. A cobiça do dinheiro ou a inveja dos ofícios,
além disso, era um sentimento comum. (...) Todos levavam seus golpes, todos
sofriam com as intrigas cruéis e nefandas. Gregório de Matos suspirou. Era
muito mais difícil viver ali. Por que voltara? Mascates no terreiro, em volta
da igreja, vendiam miudezas. O movimento das ruas aumentava. Passantes dirigiam-se
aos jogos, ao campo, para divertir-se ou murmurar contra o governo, criando
suas próprias leis e arbítrios. E, mesmo sendo ainda de manhã, alguns vinham
trôpegos.
ANA MIRANDA - Boca do inferno. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
O texto e a charge a seguir
trazem elementos que se articulam com as discussões levantadas nos textos
anteriores acerca da relação entre a sociedade e as suas próprias leis.
O império da Lei
Como
conseguir que todo um povo tenha respeito às leis escritas pelo Estado? O
Estado Democrático de Direito é um modelo de Estado inventado por cidadãos dos
tempos modernos. Nesse novo tipo de Estado pressupõe-se que os poderes
políticos sejam exercidos sempre em perfeita harmonia com as regras escritas
nas leis e nos princípios do direito. Todavia, o que temos visto no Brasil e em
outras partes do mundo é que muitos cidadãos comuns do povo, bem como também
aqueles cidadãos eleitos e/ou aprovados em concurso público para exercerem os
poderes do Estado, só obedecem às leis se estas lhes forem convenientes. O que
fazer, então? Para início de conversa, teremos todos que saber distinguir
perfeitamente o que pertence ao espaço público e o que pertence ao espaço
privado. E se você considerar uma lei injusta tome uma posição política contra
isso. Lute, pacífica e publicamente, pelo reconhecimento de seu direito e pela
mudança da lei.
Adaptado de INÊS DO AMARAL BÜSCHEL,
Promotora de Justiça de São Paulo - www.correiodacidadania.com.br
PROPOSTA DE REDAÇÃO
A
partir da leitura dos textos desta prova e de suas reflexões individuais,
redija uma dissertação, de 20 a 30 linhas, em que exponha sua opinião a
respeito da cultura de transgressão das leis, tão comentada no Brasil de hoje.
O
texto e a charge a seguir trazem elementos que se articulam com as discussões
levantadas nos textos anteriores acerca da relação entre a sociedade e as suas
próprias leis.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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