O livro da solidão
Os
senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: “Que livro
escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?”
Vêm
os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: “Uma história de
Napoleão.” Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um
passatempo... Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em
obras de muitos volumes. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda
a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e Uma
Noites.
Pois
eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se
Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com
relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado),
o que levava comigo era um dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com
algumas folhas soltas; mas um dicionário.
Não
sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o dicionário é um dos livros
mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O dicionário tem dentro
de si o universo completo. Logo que uma noção humana toma forma de palavra —
que é o que dá existência às noções —, vai habitar o dicionário. As noções
velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos
fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus
arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando
direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus,
mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não
se quer magoar ninguém...
A
minha pena é que não ensinem as crianças a amar o dicionário. Ele contém todos
os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão
para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para a poesia,
umas para a história, outras para o teatro. E as surpresas de palavras que
nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Eu
levaria o dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto
eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e
pensamentos e sementes das flores de retórica. Poderia louvar melhor os amigos,
e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria
mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. Sobretudo, sabendo que germes
pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e
ventura suprema dos homens.
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"Papos" — Luis Fernando Veríssimo
"De que ri a Mona Lisa" — Affonso Romano de Sant´Anna
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Uma das mais belas formas de expressão artística é a linguagem; nela repousa todo o imaginário humano desde os mais simples pensamentos aos elaborados mecanismos científicos. Assim, fico bastante feliz ao ler os pensamentos expressos em alguma forma de linguagem, principalmente aqueles mesclados com os mais requintados ingredientes da palavra. Cecília Meireles sabia disso:
ResponderExcluir"Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O dicionário tem dentro de si o universo completo. Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência às noções —, vai habitar o dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém..."