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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Carlos Nejar - Poemas

Carlos Nejar

Lunalva

Se quiserem saber quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se amam
Loucamente

Se quiserem saber do meu destino
- Não sei do meu destino
- Não sei do meu nome
Só sei daquela sede
Imensa sede
Que ainda não foi saciada

Se quiserem saber donde venho
- Não sei donde venho
Talvez venha do vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das madrugadas

Não
Não me amem tão depressa
"Não me compreendam tão depressa"
Não me julguem tão fácil
Por favor
Não me julguem tão mesquinho
Tão cotidiano

O pão que trago comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de beber
Do Fogo e do Sangue

(Carlos Nejar)

Os meus sentidos

Um dia vi Deus numa palavra
e luminosa despontava, argila.
E Deus vagueava tudo, aquietava
as numinosas letras, quase em fila.

E depois se banhava nesta ilha
de bosques e bilênios. Clareava
as formigas noctâmbulas da fala.
E nele os meus sentidos se nutriam.

Os meus sentidos eram coelhos ébrios
na verdura de Deus entretecidos.
A palavra empurrava o que era cego,

a palavra luzia nos sentidos.
E Deus nas vistas do menino, roda
e roda nos olhos da palavra.

(Carlos Nejar)

Assentada

Chega a esta casa
sem prazo ou contrato.
Faze de pousada
as salas e quartos.
Os nossos arreios
ninguém os desata
com ódio e receios.

O tempo não sobe
nas suas paredes;
secou como um frio
nos beirais da sede;
calou-se nos mapas,
na plácida aurora,
nos pensos retratos.

Entra nesta casa
que é tua e de todos,
há muito deixada
aberta aos assombros.

Entra nesta casa
tão vasta que é o mundo,
pequena aos enganos,
perdida, encontrada.
Os dias, os anos
são palmos de nada.

(Carlos Nejar)

Qualificação

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.

(Carlos Nejar)

"Conversation" - Renoir.

Soltos de imensidão

Os anos, Elza, já não gravam nada,
porque gravamos nós o tempo todo.
O teu cuidar, faz-me animar o fogo
e cada dia em nós, jamais se apaga.

Provados somos e o provar é um gomo
desta romã partida pelas águas.
Somos o fruto, somos a dentada
e a madureza de ir no mesmo sonho.

Os anos, Elza, não consertam mágoas,
mas as mágoas não correm, se corremos.
Não encanece a luz, onde são remos

da limpa madrugada, os nossos corpos.
Amamos. No existir estamos soltos,
soltos de imensidão entre as palavras.

(Carlos Nejar)

Abandonei-me ao vento

Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro, livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o seu despojo vão. Em toda a parte
o vento há de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Proa mergulhada

Com as coisas mais simples, silenciosas,
a casa com seus hábitos. A onda
que se compraz a descansar na água.
Pelo ar inefável, sobem rosas

de um jarro: te amo. A mesa tão redonda
que, na manhã, é proa mergulhada.
O café, junto ao leite quente, quente;
sua xícara suspensa na inocência.

E o pão cortado, a fala destilada
sob a luz. Era o tempo, sua ciência
de ir sem ser levado. Segurava

no bico do silêncio: amor, amada.
Falamos sabiás, folhas e nadas.
O sol por dentro, o galo da palavra.

(Carlos Nejar)

Luiz Vaz de Camões

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

(Carlos Nejar)

O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.

No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.

Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.

(Carlos Nejar)


De como a terra e o homem se unem 

1.
Fica a terra, passa o arado,  
"A bountiful harvest". Gregory Frank Harris

mas o homem se desgasta;
sangra o campo, pasce o gado,
brota o vento de outro lado
e a semente também brota.
Fica a terra, passa o arado
e o trabalho é o que nos passa,
como nome, como herança;
fica a terra, a noite passa.

A semente nos consome,
mas a terra se desgasta.
 
2.
Que será do novo homem
sobre a terra que vergasta ?
Sangra a terra, pasce o gado
e o trabalho é o que nos passa.

Vem o sol e cava a terra;
a semente é como espada.
Há uma noite que nos gera
quando a noite é dissipada.

Vem a noite e cava a terra;
vem a noite, é madrugada.
 
3.
O homem se desgasta,
sopro misturado
ao sopro rijo do arado.
Vai cavando.

Madrugada sai da terra,
como um corpo se entreabre
para o orvalho e para o trigo.
 
O homem vai cavando,
vai cavando a madrugada.

(Carlos Nejar)

Afluentes

Eram os executados.
Os dias intumesciam
e como frutos caíam.

Eram os executados
Sem o título ou família,
sem o tempo, sem o espaço
que de viver lhes cabia.

Percebi os vários rostos,
percebi que eles baixavam
e suas penas subiam.
A voz ninguém divisava,
A senha não existia.

Eram os executados.
Quando? Como? Quem sabia?
O mundo já os viu deitados,
agora o mundo os erguia.

Executados por fardo?
No leito da amada, um dia?
Por algum golpe de estado?
Numa conversa ou litígio?
Numa batalha ou na esquina?

Eram os executados
que desde sempre partiram
e desde sempre chegavam.

(Carlos Nejar)

Lisura 

Entras na morte,
como se entra em casa,  
"El encuentro". Remedios Varo.

desvestindo a carne,
pondo teus chinelos
e pijama velho.

Entras na morte,
como alguém que parte
para uma viagem:
não se sabe o norte
mas começa agora.

Entras na morte,
sem escuros,
sem punhais ocultos
sob o teu orgulho.
 
Entras na morte,
limpo
de cuidados breves;
como alguém que dorme
na varanda enorme,
entras na morte. 


(Carlos Nejar)

www.veredasdalingua.blogspot.com.br

Leia também:

“Um Fluminense tão Flaubert” – Nelson Rodrigues
Lêdo Ivo – Poemas
“A disciplina do amor” – Lygia Fagundes Telles
"O Ateneu" - Raul Pompeia


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3 comentários:

  1. Prof. Maurício,
    Estava em busca de poemas de Carlos Nejar, e dou com esse Veredas da Língua, um belo e instrutivo blog. Parabéns.

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  2. Procurei os poemas do Carlos Nejar por indicação de um amigo: O Orieby Ribeiro.

    Parabéns pelo blog. excelente.

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  3. Obrigada professor, estou conhecendo esse autor e seu blog veio bem a calhar.

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