Um Fluminense tão Flaubert
Possivelmente
a importante autoridade não seria uma coisa nem outra. Ou talvez fosse magro,
lívido e hierático. Mas o que eu queria dizer é que, como todo cronista, eu
tenho o meu bei de Túnis. Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Procuradoria
do Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação frequente e
mesmo obsessiva de um homem que jamais deu uma botinada, jamais bateu um
córner ou um tiro de meta?
O
leitor dirá: — “É uma obsessão”. Ao que eu responderei: — “É uma obsessão”. Se
eu pudesse, escreveria todo santo dia sobre o Otto. A princípio ele foi,
estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é algo mais. Faz-me falta não citá-lo
nas minhas crônicas. Sinto-me um frustrado e um vencido quando não uso o seu
nome uma única e escassa vez. E o interessante é que também o leitor está
viciado no Otto e tem saudades dos seus feitos, da sua figura, das suas
piadas.
Hoje,
porém, vou falar do Otto a propósito do Fluminense. Pode parecer que uma coisa
não tem nenhuma relação com a outra. Mas tem. E explico. O Otto é uma coisa que
não sei, francamente não sei, se compromete ou se consagra um estilista.
Ninguém mais divino torturado. Por vezes uma frase lhe custa arrancos de
cachorro atropelado. Outro dia o Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: “Não
seja tão Flaubert de Salambô!”.
Por
exemplo: — nas refeições o personagem do Otto “senta-se à mesa”, sempre e
inexoravelmente “à mesa”. E vamos e venhamos: — sempre que, numa obra de
ficção, o personagem senta-se com a classe referida, não é mais possível
obra-prima, não é mais possível Ana Karênina. Ao passo que,
pessoalmente, ele arrebata porque, no bate-papo, não há classe, não há
Flaubert, não há Salambô, não há nada.
Outro
dia o Otto sentou-se com o Armando Nogueira. Três horas da manhã. E o escritor
mineiro brilhou como uma Duse aos dezessete anos. Durante 45 minutos ele
provou, por A mais B, que no Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Convenceu
o Armando. Em seguida, passou a demonstrar a verdade inversa, ou seja: — que,
no Brasil, o golpe é iminente, inevitável e necessário. Estava sendo ali um
Sócrates sem alpercata.
Agora,
a relação do Otto com o Fluminense. Domingo passado, durante os primeiros
vinte minutos, o Fluminense foi um Otto, foi um estilista. Mas no futebol, como
na literatura, convém não caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfeito,
não fez gol nenhum. Tudo certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No
meu canto, eu via a hora em que perderíamos mais um ponto fatal. E vem a
grande verdade: — a obra-prima, no futebol e na arte, tem de ser imperfeita. A
partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão estilista, tão
Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões.
(Nélson
Rodrigues, in “À sombra das chuteiras imortais”, crônica publicada
originariamente em “O Globo”, em 09/11/1963.)
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