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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Texto: "Um Fluminense tão Flaubert" - Nelson Rodrigues

Um Fluminense tão Flaubert

Amigos, no tempo de Eça de Queirós, quando o articulista estava sem assunto, tinha uma solução genial, que era a seguin­te: — xingava o bei de Túnis. Em Túnis há sempre um bei, e é doce descompor alguém com a prévia e linda certeza da im­punidade. Era uma delícia para o autor de Os Maias xingar um desconhecido ilustre. Numa das vezes o bei protestou. Ao des­crever fisicamente a vítima, Eça chamou o bei de “sórdido e obeso”. 
Possivelmente a importante autoridade não seria uma coi­sa nem outra. Ou talvez fosse magro, lívido e hierático. Mas o que eu queria dizer é que, como todo cronista, eu tenho o meu bei de Túnis. Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Pro­curadoria do Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação frequente e mesmo obsessiva de um homem que ja­mais deu uma botinada, jamais bateu um córner ou um tiro de meta?
O leitor dirá: — “É uma obsessão”. Ao que eu responde­rei: — “É uma obsessão”. Se eu pudesse, escreveria todo santo dia sobre o Otto. A princípio ele foi, estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é algo mais. Faz-me falta não citá-lo nas minhas crônicas. Sinto-me um frustrado e um vencido quando não uso o seu nome uma única e escassa vez. E o interessante é que tam­bém o leitor está viciado no Otto e tem saudades dos seus fei­tos, da sua figura, das suas piadas.
Hoje, porém, vou falar do Otto a propósito do Fluminen­se. Pode parecer que uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Mas tem. E explico. O Otto é uma coisa que não sei, francamente não sei, se compromete ou se consagra um estilista. Ninguém mais divino torturado. Por vezes uma frase lhe custa arrancos de cachorro atropelado. Outro dia o Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: “Não seja tão Flaubert de Salambô!”.
Por exemplo: — nas refeições o personagem do Otto “senta-se à mesa”, sempre e inexoravelmente “à mesa”. E vamos e venhamos: — sempre que, numa obra de ficção, o personagem senta-se com a classe referida, não é mais possível obra-prima, não é mais possível Ana Karênina. Ao passo que, pessoalmente, ele arrebata porque, no bate-papo, não há clas­se, não há Flaubert, não há Salambô, não há nada.
Outro dia o Otto sentou-se com o Armando Nogueira. Três horas da manhã. E o escritor mineiro brilhou como uma Duse aos dezessete anos. Durante 45 minutos ele provou, por A mais B, que no Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Conven­ceu o Armando. Em seguida, passou a demonstrar a verdade in­versa, ou seja: — que, no Brasil, o golpe é iminente, inevitável e necessário. Estava sendo ali um Sócrates sem alpercata.
Agora, a relação do Otto com o Fluminense. Domingo pas­sado, durante os primeiros vinte minutos, o Fluminense foi um Otto, foi um estilista. Mas no futebol, como na literatura, con­vém não caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfei­to, não fez gol nenhum. Tudo certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No meu canto, eu via a hora em que perde­ríamos mais um ponto fatal. E vem a grande verdade: — a obra-prima, no futebol e na arte, tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões.

(Nélson Rodrigues, in “À sombra das chuteiras imortais”, crônica publicada originariamente em “O Globo”, em 09/11/1963.) 

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