A
casa viaja no tempo
"Keeping out of the cold" - James Hayllar |
Volto,
como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o
mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma
cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa,
eu… E tantas vezes vim aqui que não tomo consciência das coisas que mudaram.
Sento-me,
por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é
tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se
lembra de mim há muito tempo. “Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de
paletó e sem gravata. Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu
me lembro muito bem. Eu tinha seis anos…”
Seis
anos! Certamente não me lembro dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve
cheia de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos
através de muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim
fazem parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.
A
primeira recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes
dançava no jardim. Era certamente linda; mas não creio que tivéssemos trocado,
através dos anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga
impressão de que, por algum motivo imponderável, ela não simpatizava comigo. Só
agora me dou conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de
seus flertes, seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou,
sei que hoje, ainda tão moça, tem dois filhos – e a maternidade veio definir
melhor sua radiosa beleza juvenil.
Inutilmente
procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava
triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante
esses inumeráveis domingos. Certamente fui sempre, para ela, uma figura
constante, mas vaga – um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver
distraidamente de vez em quando – às vezes com um ano ou mais de intervalo, que
viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a
primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos “boa-noite”
e “como vai?” mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente
quando ela diz: “eu tinha seis anos...”
Penso
em tudo o que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi – e
penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A
casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai
singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada
domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada
na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o
mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa noite de domingo,
sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará
outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de
domingo – e não voltaram mais.
(Rubem
Braga)
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“O bracelete” – José de Alencar
Augusto Frederico Schmidt – Poemas
“Fita Verde no cabelo” – Guimarães Rosa
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