João Cabral de Melo Neto
Questão de pontuação
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);
viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):
o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive,
o inevitável ponto final.
(João Cabral de Melo Neto)
Cartão de Natal
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece um ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece um ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
(João Cabral de Melo Neto)
"Amanhecer" - Autor: Ranchinho - Galeria Brasiliana |
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livrre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livrre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)
Cemitério pernambucano (Nossa Senhora da Luz)
Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
(João Cabral de Melo Neto)
Pregão turístico do Recife
Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.
Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.
E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua macha quase nula,
e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de aprodecer
vidas inteiras a fio,
podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.
Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.
E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua macha quase nula,
e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de aprodecer
vidas inteiras a fio,
podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.
(João Cabral de Melo Neto)
Anti-char
Poesia intransitiva,
sem mira e pontaria:
sua luta com a língua acaba
dizendo que a língua diz nada.
É uma luta fantasma,
vazia, contra nada;
não diz a coisa, diz vazio:
nem diz coisas, é balbucio.
(João Cabral de Melo Neto)
Homenagem a Picasso
O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.
(João Cabral de Melo Neto)
Cartaz do filme “Morte e vida Severina”, de 1981. O poema “Funeral de um lavrador” foi musicado por Chico Buarque e cantado por Tânia Alves no filme. |
Funeral de um lavrador
Severino assiste
ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que
o levaram ao cemitério
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom
tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova
grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova
grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova
grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
(João Cabral de Melo Neto, in “Morte e vida Severina”)
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.
(João Cabral de Melo Neto)
O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(João Cabral de Melo Neto)
A educação pela pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(João Cabral de Melo Neto, in “A educação pela pedra”)
Como a Morte se infiltra
Certo dia, não se levanta
porque quer demorar na cama.
No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.
No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.
Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.
Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.
Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.
Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,
Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.
Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.
Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.
Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.
Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.
porque quer demorar na cama.
No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.
No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.
Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.
Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.
Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.
Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,
Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.
Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.
Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.
Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.
Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.
(João Cabral de Melo Neto)
A lição de poesia
1.
1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2.
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
"Crackers in bed". 1921. Norman Rockwell |
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3.
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
Leia também:
“Fita Verde no cabelo” – Guimarães Rosa
“A casa viaja no tempo” – Rubem Braga
Affonso Romano de Sant´Anna – Poemas
“Vinte e uma coisas que aprendi como escritor” – Moacyr Scliar
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