Entre aspas
Trechos e obras de grandes escritores são publicados em
livros de resumos e redes sociais, muitas vezes falsos ou fora do contexto
original
O livro que Mario Quintana mais vendeu em
vida foi sua agenda poética, triste zombaria a um dos poetas mais amados do
país. Era um agourento sinal da tempestade que estava apenas começando. Com o
apogeu dos vestibulares, os livros se tornaram resumos. Com o declínio dos
vestibulares, eles viraram sentenças. Não havia limites para a retração.
Grandes e imensas obras foram se transformando em quadrinhos, trechos e frases,
publicados em blogs e
perfis do Twitter do Facebook.
O sueco Henrik Lange ironizou o momento
dissecando referências literárias em rápidas caricaturas. Em “90 livros
clássicos para apressadinhos”, as mil páginas do monumental “Dom Quixote de la
Mancha” acabaram reduzidas
a cinco linhas: “Dom Quixote, na época em que não tinha TV, lia pra cacete e
ficou com umas ideias malucas. Ele ataca moinhos que pensa serem gigantes e até
o cavalo dele acha que ele é louco. Ele descobre que não tem mais lugar pra
heróis no mundo e resolve voltar pra casa. O cavalo dá graças a Deus (e os
moinhos também)”.
Seguindo a mesma compressão descolada, o transcendental enredo de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, pode ser abreviado à esquálida sinopse: “Ex-jagunço Riobaldo assume a liderança do bando com a morte de Joca Ramiro, seu chefe, assassinado por Hermógenes, líder de grupo rival. Riobaldo busca vingar a morte de Joca Ramiro, para ele uma questão de honra. Nessa intenção, tenta um pacto com o demônio para obter proteção e força”.
Seguindo a mesma compressão descolada, o transcendental enredo de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, pode ser abreviado à esquálida sinopse: “Ex-jagunço Riobaldo assume a liderança do bando com a morte de Joca Ramiro, seu chefe, assassinado por Hermógenes, líder de grupo rival. Riobaldo busca vingar a morte de Joca Ramiro, para ele uma questão de honra. Nessa intenção, tenta um pacto com o demônio para obter proteção e força”.
Gozação? Não, preguiça. Ler ganhou a
solenidade de estudo. Difícil, demorado. As redes sociais e os aplicativos
passaram a converter autores em gurus. A moda é extrair trechos de caudalosas
narrativas para bombarem na internet. Hoje, uma frase irônica é deslocada do
seu contexto, a ponto de parecer um elogio. Pensamentos provisórios recebem
ares definitivos de epitáfios. Romancistas como Clarice Lispector, Caio
Fernando Abreu e Ernest Hemingway viram dublês dos fãs e são condenados a uma
condição secundária de frasistas.
Uma descrição de apoio, sem nenhuma
relevância fora da trama, é emoldurada pelo bronze das aspas. O twitter fake de
Virginia Woolf (@Woolf_Virginia), com mais de oito mil seguidores, por exemplo,
aproveita para postar uma frase da escritora inglesa: “Tão logo essa palavra
‘amor’ lhe ocorreu, ela a rejeitou”. A gratuidade beira a insanidade. Ela quem?
De onde foi retirado o fragmento? Qual a lógica dessa observação?
Banalidades têm contornos de iluminação
profética. A grife (autoria) reveste platitudes de falsa densidade. O
raciocínio é o seguinte: se Virginia Woolf escreveu, só pode ser profundo. Um
pouco mais, teremos a autoria de vírgulas e travessões.
Inspirado pela Wikipédia, o leitor tomou a
iniciativa de editar sua biblioteca e alimentar a intensa e tumultuada
convivência digital com máximas edificantes (não importam os meios). O gosto
pela frase de efeito vem resultando na produção em série de frases de defeito,
pondera o crítico Antonio Carlos Secchin. “Há um desvio da direção do original,
um desapontamento do destino. ‘Leia isso e se torne feliz em dez segundos’ é a
tônica dos propagadores internéticos, que pretendem veicular por meio de
pensamentos pinçados a esmo e nem sempre transcritos com fidelidade na obra de
autores consagrados”, lamenta.
Talvez seja o fim dos tempos. As trágicas
horas de Nietzsche são agora eufóricos minutos de sabedoria. Seus pensamentos
sequestrados soam como conselhos de padre: “Pobre do pensador que não é o
jardineiro, mas apenas o canteiro de suas plantas” e “De que vale o ronronar de
alguém que não sabe amar, como um gato?”.
Toda contestação e fúria migram para um
sentimentalismo ingênuo de sermão. Não há citação da fonte, muito menos
qualquer referência bibliográfica, o que piora o cenário. “Existe uma tropa de
imitadores sem alma desidratando o pensador, logo ele, que pregava o amor aos
fatos”, comenta o psicoterapeuta gaúcho Paulo Sergio Rosa Guedes, autor de “O
sentimento de culpa”.
Thalita Rebouças, especialista em sucessos
adolescentes como “Ela disse,ele disse” e ‘Fala sério, filha”, 13 livros
publicados e mais de 1 milhão de exemplares vendidos, defende o jogo de cintura
e a cabeça fresca hoje em dia. Tampouco pretende controlar suas criações na
internet: “Ficaria paranoica”, ri. A autora é da tese de que, depois de
escrito, o livro é do leitor e cada um tem o direito de entender a história do
seu jeito.
A autora não sofre de onipotência virtual,
a ponto de se “googlar” para verificar o alcance do seu nome. Ri dos enganos
como se fossem necessários para o aprendizado do ofício. Relaxa e quase goza:
“Dei uma entrevista em que a última pergunta era sobre a minha primeira vez (já
que estava lançando “Era uma vez minha primeira vez”). Respondi: Tinha 18 anos,
foi bacana e sem traumas. Na capa do jornal online, a manchete era: ‘Thalita Rebouças
conta como perdeu a virgindade’ (risos). Tem como não rir? A matéria estava
entre as cinco mais lidas do jornal. E eu não contei nada! Só que foi bacana e
sem traumas. Agradeci ao repórter. Se fosse ‘Thalita Rebouças fala sobre livro
novo’ tenho certeza de que ficaria entre as cinco menos lidas do jornal.”
Já Martha Medeiros, best-seller com “Feliz por nada”, não é presa
contumaz do Ctrl+C/ Ctrl+V. Suas mortes literárias são de distinta ordem, não
menos dolorosas. “Não acontece muito de pescarem uma frase e a tirarem do
contexto. Sou campeã em outra modalidade: passarem meus textos adiante cheios
de enxertos e finais melosos. Eca. Fica uma churumela de doer. O pessoal faz
sua ‘colaboração’ sem o menor constrangimento e repassa mantendo a minha
assinatura.”
Famosa pelo romance “Divã”, adaptado em
cinema e televisão, Martha tem que aturar o troca-troca do crédito de seus
textos. É ghost writer involuntária de uma enciclopédia. “O
texto é meu, porém assinado por Pablo Neruda, Verissimo, Mario Quintana, Pedro
Bial, Miguel Falabella...”
A ficcionista gaúcha conta apenas com a
vigilância dos leitores fiéis e fanáticos, que avisam, e procuram esclarecer
confusões e, diante de uma versão apócrifa, mandam a cópia correta. “Isso é um
pingo d´água dentro de um transbordamento de estelionatos autorais. E ainda
existem os casos de má-fé, que julgo como crime: em época de campanha
eleitoral, já infiltraram o nome de um candidato no meio de minha crônica, como
se eu declarasse o apoio”, relata Martha.
O negócio é refazer a Arca de Noé:
proteger os livros e enfrentar o dilúvio. E abandonar os papagaios, os
carrapatos e as serpentes pelo caminho.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
Leia também:
“Vinte e uma coisas que aprendi como escritor” – Moacyr Scliar
João Cabral de Melo Neto – Poemas
“Fita Verde no Cabelo” – Guimarães Rosa
Ana Cristina César – Poemas
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Confesso que já fui (e as vezes ainda peco) de pegar frases ou mensagens e não verificar se o autor é realmente o autor. Hoje, ainda mais com a facilidade em poder pesquisar, faço isso, antes de publicar ou passar algo pra frente.
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