Rachel
de Queiroz conseguiu grande reconhecimento já em seu livro de estreia, “O
Quinze”, publicado em 1930. Por meio de impressionantes descrições da terra
devastada, a autora relata as bárbaras consequências da grande seca que assolou
o Nordeste em 1915. Segue um trecho da obra.
O
Quinze
Debaixo de um juazeiro grande,
todo um bando de retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma mulher
nova, algumas crianças.
O sol, no céu, marcava onze horas. Quando Chico Bento, com
seu grupo, apontou na estrada, os homens esfolavam uma rês e as mulheres faziam
ferver uma lata de querosene cheia de água, abanando o fogo com um chapéu de
palha muito sujo e remendado.
Em toda a extensão da vista, nenhuma outra árvore surgia.
Só aquele juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na
desolação cor de cinza da paisagem.
Cordulina ofegava de cansaço. A Limpa-Trilho gania e
parava, lambendo os pés queimados.
Os meninos choramingavam, pedindo de comer.
E Chico Bento pensava:
– Por que, em menino, a inquietação, o calor, o cansaço,
sempre aparecem com o nome de fome?
– Mãe, eu queria comer... me dá um taquinho de rapadura!
– Ai, pedra do diabo! Topada desgraçada! Papai, vamos comer
mais aquele povo, debaixo desse pé de pau?
O juazeiro era um só. O vaqueiro também se achou no direito
de tomar seu quinhão de abrigo e de frescura.
E depois de arriar as trouxas e aliviar a burra, reparou
nos vizinhos. A rês estava quase esfolada. A cabeça inchada não tinha chifres.
Só dois ocos podres, mal cheirosos, donde escorria uma água purulenta.
Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos
esfoladores:
– De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?
Um dos homens levantou-se, com a faca escorrendo sangue, as
mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo:
– De mal dos chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos
aproveitar, mode não dar para os urubus.
Chico Bento cuspiu longe, enojado:
– E vosmecês têm coragem de comer isso? Me ripuna só de
olhar...
O outro explicou calmamente:
– Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela
na boca...
Chico Bento alargou os braços, num grande gesto de
fraternidade:
– Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação
salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu
vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tenho um bocado no meu
surrão!
Realmente a vaca já fedia, por causa da doença.
Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era
uma festa para os urubus vê-la, lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens.
E para comemorar o achado executavam no ar grandes rondas
festivas, negrejando as asas pretas em espirais descendentes.
(Rachel
de Queiroz, in “O Quinze”)
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