O amor e outros males
"Confession". Jack Vettriano. |
Uma delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista "qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda". E diz mais: "Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo."
Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo – "incômodo". Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias.
A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora – incomodou.
Eu andava pela rua e sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela.
Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a "vontade de chorar e de morrer", de que fala o samba?
Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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Muito bom! Nunca tinha lido esta.
ResponderExcluirAbraço.
Olá, Mariana!
ResponderExcluirEu também descobri essa recentemente. É bom saber que Rubem Braga tem trocentas crônicas porque de vez em quando nos deliciamos com uma excelente e inédita para nós.
ps. Embora esteja repleto de trabalho nesse final de ano, sempre arrumo um tempinho para visitar o seu blog e ficar navegando, navegando...
Grande abraço!
Em 1968, aos doze anos na 2ªsérie ginasial, descobri esta crônica e este autor num livro de gramática...meu encantamento foi imediato...e passei a "persegui-lo"!!! Tenho todos os livros dele...aos quais vivo relendo...e lembro de ter chorado ao saber de sua morte em 1990!!!
ResponderExcluirO mesmo aconteceu comigo, só que em 1967.
ExcluirOlá, Ivete!
ResponderExcluirRubem Braga é até hoje considerado o nosso maior cronista. E como é bom ouvir essas histórias deliciosas, momentos que ficam eternizados em nossa memória. Lembro-me perfeitamente bem também de diversos textos que conheci na adolescência. Muito legal!
Grande beijo e obrigado por prestigiar o blog.