Eu
sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia.
"A hopeless dawn"- Frank Bramley |
A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E,
porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha
para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre
as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se
acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está
atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A
comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é
noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem
ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a
ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números
para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações
de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da
guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia
inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o
que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que
pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais
do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais
trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se
cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver
cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a
comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas
fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro
tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água
potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a
não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos
cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma
dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a
gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está
contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho
está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana
não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque
tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma
para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
(Marina
Colasanti)
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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