O menino
que escrevia versos
"Boy writing" - Benjamin Lacombe |
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Versos do Menino que fazia
versos)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na
esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de
alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina
respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por
destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias.
Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira
tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de
igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses
dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de
rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de
combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão
e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da
casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria
do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da
escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más
companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as
meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se
passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a
vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai,
conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica,
parte elétrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse
os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira.
Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro
àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de
escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o
clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem
dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver,
doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na
nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse
sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, por quê? Perto, o sonho aleijaria
alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da
mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a
idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada,
inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à
terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o
interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma
clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que
desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali
catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou
o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o
paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos?
O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim,
a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase
a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais
grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre
soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria
ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E
assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o
médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado
o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai
lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue
lendo...
(Mia
Couto)
www.veredasdalingua.blogspot.com.br
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