O aluno relapso
Eu
era o primeiro da aula; ele, o último.
Cumulado
pelos elogios dos professores e o orgulho familiar, eu invejava, do fundo do
coração, o colega turbulento sentado emblematicamente no último banco.
"Flowers" - Banksy |
Ele
fumava nos recreios, desafiando o olhar suspeitoso dos vigilantes (e, entre
duas tragadas enérgicas, proclamava atrevidamente a inexistência de Deus),
envolvia-se em episódios truculentos, vangloriava-se de proezas sexuais nem
sempre ortodoxas. Seu rendimento escolar era praticamente nulo, e os
professores, irmãos maristas, submetiam-no a continuados exercícios de humilhação.
Mas eu o invejava; ele significava, para mim, a aventura e a transgressão.
Uma
tarde de domingo, o acaso nos fez caminhar juntos pelas ruas da cidade. Não
lembro o que conversamos — do longo passeio, que só terminou ao
sol-posto, ficou apenas a recordação de que ele me ofereceu um cigarro, por mim
recusado.
O
encontro inesperado repercutiu na mesa familiar e chegou aos ouvidos dos irmãos
maristas, pela boca de alguns piedosos delatores. Fui advertido de que deveria
evitar a companhia indigna, licenciosamente aparelhada para desviar-me dos
estudos e do bom caminho.
Da
avalancha de notas más que lhe juncou a trajetória escolar, resultou a sua
reprovação, no fim do ano. Perdi-o de vista.
Quarenta
anos depois, numa viagem a Maceió, voltei a encontrar o aluno relapso. Ele
pertencia à nobre linhagem dos alagoanos que, amando a terra natal
como as cobras amam seus ninhos de pedra, não emigram. Era professor de Direito
e desembargador, rico e respeitado, de tendências políticas cerradamente conservadoras
ou mesmo autoritárias. Considerava a religião um freio indispensável para
sustar os desatinos humanos, e entendia que só o pulso forte das instituições
militares tinha o poder de conjurar a vocação deletéria da sociedade civil e
evitar a anarquia nacional.
O
desenho final não correspondera ao rascunho da adolescência. Nem sequer
fumava, como se os cigarros furtivos do tempo de colégio tivessem sido
incluídos na sua lista de condenações e olvidos.
Vivre avilit — foi
esta frase de Henri de Régnier que ressoou na minha memória no instante em que
o vi passar, severo e compassado, rumo ao Tribunal de Justiça. O Rimbaud sem
gênio se convertera num intolerante julgador dos outros homens.
A
vida rouba os nossos sonhos, mas há algo que a grande ladra não consegue levar.
A deserção formidável fizera de mim o herdeiro do aluno relapso. O sentimento
de aventura e transgressão, de que ele se despojara em sua metamorfose
espiritual, passara a ser meu.
Eu
desmentira os vaticínios que rodeavam a minha austera reputação de primeiro da
aula, tornando-me um poeta, e era agora, na idade madura, o aluno relapso que
secretamente desejara ser na adolescência.
O
ato de viver não me envileceu.
(Lêdo
Ivo, in "Histórias de professores e alunos")
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"O amor acaba" - Paulo Mendes Campos
Ribeiro Couto - Poemas
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