TEMA DE REDAÇÃO – PUC-RIO – 2014 – 2º Semestre
REDAÇÃO
Autocrítica e autoconhecimento: caminhos para o outro
Formule um texto (de 20 a 25 linhas) que possa ter o
título acima – “Autocrítica e autoconhecimento: caminhos para o outro” –,
dissertando a respeito da questão do etnocentrismo na cultura ocidental. Serão
valorizadas a coerência, a coesão e a correção de sua escrita. Os trechos a
seguir devem ser citados, em seu texto, acompanhados, obrigatoriamente, da
menção às devidas fontes (nome do autor e título da obra). NÃO ASSINE.
Texto
1 - O que é etnocentrismo
Etnocentrismo é uma visão do mundo
na qual o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros
são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas
definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a
dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como o fato de
sentirmos estranheza, medo, hostilidade, etc. [...] Esse problema não é
exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade.
Como uma espécie de pano de fundo
da questão etnocêntrica, temos a experiência de um choque cultural. De um lado,
está “um grupo do eu", o "nosso" grupo, que come igual, veste
igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos
mesmos deuses, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados
em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de
repente, nos deparamos com um "outro", o grupo do
"diferente" que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou,
quando as faz, é de forma tal que não as reconhecemos como possíveis. Mais
grave ainda: esse “outro" também sobrevive à sua maneira, gosta do seu
jeito de viver, também está no mundo e, ainda que diferente de nós, também
existe. [...]
O grupo do "eu" faz,
então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente, se for o caso, a
melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do "outro" fica,
nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Esse
processo resulta num considerável reforço da identidade do "nosso"
grupo. No limite, algumas sociedades chamam-se por nomes que querem dizer
"perfeitos", "excelentes" ou, muito simplesmente, "ser
humano"; ao "outro", ao estrangeiro, chamam, por vezes, de
"macacos da terra" ou "ovos de piolho". De qualquer forma,
a sociedade do "eu" é a melhor, a superior. É representada como o
espaço da cultura e da civilização por excelência. É onde existe o saber, o
trabalho, o progresso. A sociedade do "outro" é atrasada. É o espaço
da natureza, cheio de selvagens, de bárbaros. Eles são estranhos para nós,
pois, lá no fundo, embora não saibamos, somos nós mesmos.
Adaptado do livro "O Que é Etnocentrismo",
de Everardo Rocha (Brasiliense, 1984, p. 7-22)
Texto
2 - Descoberta de novos mundos
O antropólogo americano Loren
Eiseley (1907-1977) conta uma história que exprime um possível encontro com
outras realidades em nossa rotina. Para Eiseley, descobrir outro mundo não é
apenas um fato imaginário, mas algo fantástico que acontece aos homens e aos
outros animais. Por vezes, as fronteiras entre distintos universos resvalam ou
interpenetram-se: basta estar presente nesse momento. O antropólogo relata um
fato que viu acontecer com um corvo: “Esse corvo é meu vizinho e eu nunca lhe
fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de
voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista
acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro
extraordinariamente espesso, e eu me dirigia às apalpadelas para a estação.
Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas,
precedidas por um bico gigantesco, e tudo isso passou como um raio, soltando um
grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais ouça coisa semelhante”.
O grito não saiu da mente de Eiseley durante toda a tarde, tamanha foi a sua
intensidade. Em virtude do denso nevoeiro, a fronteira entre o mundo do corvo e
o dele – um homem – resvalara, caíra, tombara. Aquele corvo, que achava estar
voando à altitude habitual, tinha visto, subitamente, um espetáculo contrário,
para ele, às leis da natureza: um homem caminhando no espaço, bem no centro do
mundo dos corvos. A imensa ave tinha se deparado com a manifestação de
estranheza mais completa que podia conceber. Na análise de Eiseley, o animal
tinha visto, pela primeira vez, um fantástico homem voador: “Agora , quando me
vê, lá do alto, solta pequenos gritos, nos quais reconheço a incerteza de um
espírito cujo universo foi abalado. Já não é e nunca mais será como os outros
corvos”. Ninguém permanece igual quando se depara com o mundo do “outro”.
Adaptado do livro “O Despertar dos Mágicos”, de Louis
Pauwels (Tradução de Gina de Freitas para a editora Bertrand Brasil, 1998,
p. 23-25)
Texto
3 - Crítica é arma contra a desorientação
Os parâmetros de julgamento dependem
de nossas raízes, de nossas preferências, de nossos hábitos, de nossas paixões,
de um sistema de valores nosso. Por exemplo: será que julgamos ser um valor
prolongar a média de expectativa de vida de 40 para 80 anos? Pessoalmente,
acredito que sim, mas muitos místicos poderiam dizer-me que, entre um devasso
que viveu 80 anos e São Luiz Gonzaga, que viveu 23, o segundo teve uma vida
mais plena. Mas admitamos que o prolongamento da vida seja um valor: se fosse
assim, a medicina e a ciência ocidentais certamente seriam superiores a muitos
saberes e práticas médicas.
Acreditamos que o desenvolvimento
tecnológico, a expansão dos comércios, a rapidez dos transportes sejam um
valor? Muitíssimos pensam assim e têm o direito de julgar superior a nossa
civilização tecnológica. Mas justo no interior do mundo ocidental há aqueles
que consideram um valor fundamental uma vida em harmonia com um ambiente não
corrompido e, por isso, estão preparados para renunciar a aviões, automóveis e
geladeiras para confeccionar cestas e mover-se a pé de vilarejo em vilarejo,
desde que não haja buraco na camada de ozônio. E, dessa forma, vejam que, para
definir uma cultura como melhor do que a outra, não basta descrevê-la (como faz
o antropólogo). É preciso referir-se a um sistema de valores aos quais pensamos
não poder renunciar. Só então podemos dizer que a nossa cultura, para nós, é
melhor.
O problema dos parâmetros não se
coloca em chave histórica, mas, sim, em chave contemporânea. Uma das coisas
louváveis das culturas ocidentais (livres e pluralistas, e esses são os valores
que consideramos irrenunciáveis) é que perceberam há um bom tempo que a mesma
pessoa pode ser levada a manobrar parâmetros diferentes e mutuamente
contraditórios sobre questões diferentes. Por exemplo, considera-se um bem o
prolongamento da vida e um mal a poluição atmosférica, mas sabemos bem que,
para termos os laboratórios onde se estuda o prolongamento da vida, é preciso
ter um sistema de comunicação e um fornecimento de energia que, possivelmente,
por sua vez, produza poluição. A cultura ocidental elaborou a capacidade de
desnudar livremente suas próprias contradições. Pode ser que não as resolva,
mas sabe que existem e o diz. No fim das contas, todo o debate a favor e contra
a globalização está aqui, com exceção dos fascistas, que destroem tudo: como é
suportável uma cota de globalização positiva, evitando os riscos e as
injustiças da globalização perversa, como se pode prolongar a vida mesmo dos
milhões de africanos que morrem de Aids (e, ao mesmo tempo, alongar a nossa)
sem aceitar uma economia planetária que faz com que os doentes de Aids morram
de fome e com que nós engulamos comidas contaminadas? Mas justamente essa
crítica dos parâmetros, que o Ocidente persegue e encoraja, nos faz entender
como a questão dos parâmetros é delicada. É justo e civil proteger o sigilo
bancário? Muitos consideram que sim. Mas e se esse sigilo permitir aos
terroristas manter seu dinheiro na cidade de Londres? E então, a defesa da
privacidade é um valor positivo ou dúbio? Nós colocamos nossos parâmetros
continuamente em discussão. O mundo ocidental o faz a tal ponto que consente
que os próprios cidadãos recusem como positivo o parâmetro de desenvolvimento
tecnológico e se tornem budistas ou passem a viver em comunidades onde não se
usam pneus, nem mesmo para as carroças a cavalo. A escola deve ensinar a
analisar e a discutir os parâmetros sobre os quais se sustentam nossas
afirmações passionais.
Adaptado do ensaio "Simplificação gera guerras
santas", de Umberto Eco (“Folha de S. Paulo”/”La Republica”,
07/10/2001, tradução de Gustavo Steinberg)
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