Prova
de língua portuguesa – Unifesp 2017
QUESTÃO 01 - Examine a tira do cartunista argentino
Quino (1932- ).
(Quino. A
pequena filosofia da Mafalda, 2015.)
(A) um anúncio
publicitário.
(B) um livro sobre
culinária.
(C) uma peça de
teatro.
(D) uma cartilha
escolar.
(E) um guia
turístico.
Leia o trecho
inicial de Raízes do Brasil, do historiador brasileiro Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982), para responder às questões de 02 a 07.
A
tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de
condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição
milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico
em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio,
nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente
muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa
terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de
aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que
representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa
preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e
de outra paisagem.
Assim,
antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia
averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio,
instituições e ideias de que somos herdeiros.
É
significativa, em primeiro lugar, a circunstância de termos recebido a herança
através de uma nação ibérica. A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os
países balcânicos (e em certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-ponte
pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Assim, eles constituem
uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse
europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.
Foi
a partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países
entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria
repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares
de sua história e de sua formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de
sociedade que se desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das
congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento que já não
trouxesse em germe.
Quais
os fundamentos em que assentam de preferência as formas de vida social nessa
região indecisa entre a Europa e a África, que se estende dos Pireneus a
Gibraltar? Como explicar muitas daquelas formas, sem recorrer a indicações mais
ou menos vagas e que jamais nos conduziriam a uma estrita objetividade?
Precisamente
a comparação entre elas e as da Europa de além-Pireneus faz ressaltar uma
característica bem peculiar à gente da península Ibérica, uma característica
que ela está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade, com qualquer
de seus vizinhos do continente. É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver
a tal extremo essa cultura da personalidade, que parece constituir o traço mais
decisivo na evolução da gente hispânica, desde tempos imemoriais. Pode
dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos
semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua
originalidade nacional. [...]
É
dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de
todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos.
Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não
ser por uma força exterior respeitável e temida.
(Raízes do Brasil,
2000.)
QUESTÃO 02 - No primeiro parágrafo, o autor recorre
a uma construção paradoxal em:
(A) “condições
naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar”.
(B) “somos ainda
hoje uns desterrados em nossa terra”.
(C) “timbrando em
manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil”.
(D) “enriquecer
nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos”.
(E) “o fato
dominante e mais rico em consequências”.
QUESTÃO
03 - Em
“Podemos [...] elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos”
(1o parágrafo), o termo em destaque exerce a mesma função sintática do trecho
destacado em:
(A) “[...] todo
o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um
sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.” (1o parágrafo)
(B) “Esse
ingresso tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos [...].”
(4o parágrafo)
(C) “[...] somos
ainda hoje uns desterrados em nossa terra.” (1o parágrafo)
(D) “É
significativa, em primeiro lugar, a circunstância de termos recebido a
herança através de uma nação ibérica.” (3o parágrafo)
(E) “Assim, antes
de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa [...].”
(2o parágrafo)
QUESTÃO 04 - Em “A Espanha e Portugal são, com a Rússia
e os países balcânicos (e em certo sentido também a Inglaterra), um dos
territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros
mundos.” (3o parágrafo), o pronome destacado refere-se a
(A) “Europa”.
(B) “Rússia e os
países balcânicos”.
(C) “Espanha e
Portugal”.
(D)
“territórios-ponte”.
(E) “mundos”.
QUESTÃO 05 - Em “Assim, eles constituem uma zona
fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que,
não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.” (3o parágrafo), a
expressão destacada pode ser substituída, sem prejuízo para o sentido do texto,
por
(A) contudo. (B)
além disso. (C) assim sendo. (D) portanto. (E) ainda bem
QUESTÃO 06 - O Dicionário Houaiss de língua
portuguesa define “elipse” como “supressão, num enunciado, de um termo que
pode ser facilmente subentendido pelo contexto linguístico”. Verifica-se a
ocorrência desse recurso em:
(A) “A Espanha e
Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em certo sentido também a
Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os
outros mundos” (3o parágrafo)
(B) “Em terra onde
todos são barões não é possível acordo coletivo durável” (7o parágrafo)
(C) “Precisamente
a comparação entre elas e as da Europa de além-Pireneus faz ressaltar uma
característica bem peculiar à gente da península Ibérica” (6o parágrafo)
(D) “Foi a partir
da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países entraram mais
decididamente no coro europeu” (4o parágrafo)
(E) “o certo é que
todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um
sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem” (1o parágrafo)
QUESTÃO 07 - Em “É dela que resulta largamente a
singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que
impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos.” (7o parágrafo), o termo
destacado pode ser substituído, sem prejuízo para o sentido do texto, por
(A) constância. (B)
firmeza. (C) estranheza. (D) combinação. (E) fraqueza.
Leia o soneto “A
uma dama dormindo junto a uma fonte”, do poeta barroco Gregório de Matos
(1636-1696), para responder às questões de 08 a 11.
À margem de uma
fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros
cantores
A bela ocasião das
minhas dores
Dormindo estava ao
despertar do dia.
Mas como dorme
Sílvia, não vestia
O céu seus
horizontes de mil cores;
Dominava o
silêncio entre as flores,
Calava o mar, e
rio não se ouvia.
Não dão o parabém
à nova Aurora
Flores canoras,
pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar
respira a rica Flora.
Porém abrindo
Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia
festeja, tudo adora
Aves cheirosas,
flores ressonantes.
(Poemas
escolhidos, 2010.)
QUESTÃO 08 - Mais recorrente na poesia arcádica,
verifica-se neste soneto barroco o recurso, sobretudo, ao seguinte lema latino:
(A) “locus
horrendus” (“lugar horrível”).
(B) “locus
amoenus” (“lugar aprazível”).
(C) “memento mori”
(“lembra-te da morte”).
(D) “inutilia
truncat” (“corta o inútil”).
(E) “carpe diem”
(“aproveite o dia”).
QUESTÃO 09 - No soneto, a seguinte expressão é
empregada pelo eu lírico em lugar de sua musa Sílvia:
(A) “Flores
canoras, pássaros fragrantes”.
(B) “À margem de
uma fonte, que corria”.
(C) “O céu seus
horizontes de mil cores”.
(D) “A bela
ocasião das minhas dores”.
(E) “Aves
cheirosas, flores ressonantes”
QUESTÃO 10 - A sinestesia consiste em transferir
percepções de um sentido para as de outro, resultando um cruzamento de sensações.
(Celso Cunha. Gramática essencial, 2013.) Verifica-se a ocorrência desse
recurso no seguinte verso:
(A) “Flores
canoras, pássaros fragrantes,” (3a estrofe)
(B) “À margem de
uma fonte, que corria,” (1a estrofe)
(C) “Porém abrindo
Sílvia os dois diamantes,” (4a estrofe)
(D) “Dominava o
silêncio entre as flores,” (2a estrofe)
(E) “O céu seus
horizontes de mil cores;” (2a estrofe)
QUESTÃO 11 - Assinale a alternativa em que o trecho do
soneto está reescrito em ordem direta, sem alteração do seu sentido original.
(A) “Não dão o
parabém à nova Aurora / Flores canoras, pássaros fragrantes” → A nova Aurora
não dá o parabém às flores canoras e aos pássaros fragrantes.
(B) “Calava o mar,
e rio não se ouvia” → O mar se calava e não ouvia o rio.
(C) “não vestia /
O céu seus horizontes de mil cores” → O céu não vestia seus horizontes de mil
cores.
(D) “Tudo a Sílvia
festeja, tudo adora” → A Sílvia festeja tudo, adora tudo.
(E) “A bela
ocasião das minhas dores / Dormindo estava ao despertar do dia” → Ao despertar
do dia, estava dormindo a bela ocasião de minhas dores.
QUESTÃO 12 - Predomina neste movimento uma tônica mais
cosmopolita, intimamente ligada às modas literárias da Europa, desejando pertencer
ao mesmo passado cultural e seguir os mesmos modelos, o que permitiu incorporar
os produtos intelectuais da colônia inculta ao universo das formas superiores de
expressão. Ao lado disso, tal movimento continuou os esboços particularistas
que vinham do passado local, dando importância relevante tanto ao índio e ao
contato de culturas, quanto à descrição da natureza, mesmo que fosse em termos clássicos.
(Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira, 2010. Adaptado.)
Tal comentário
refere-se ao seguinte movimento literário brasileiro:
(A) Romantismo. (B)
Classicismo. (C) Naturalismo. (D) Barroco. (E) Arcadismo.
Leia a fábula “A
raposa e o lenhador”, do escritor grego Esopo (620 a.C.?-564 a.C.?), para
responder às questões de 13 a 15.
Enquanto
fugia de caçadores, uma raposa viu um lenhador e lhe pediu que a escondesse.
Ele sugeriu que ela entrasse em sua cabana e se ocultasse lá dentro. Não muito
tempo depois, vieram os caçadores e perguntaram ao lenhador se ele tinha visto
uma raposa passar por ali. Em voz alta ele negou tê-la visto, mas com a mão fez
gestos indicando onde ela estava escondida. Entretanto, como eles não prestaram
atenção nos seus gestos, deram crédito às suas palavras. Ao constatar que eles
já estavam longe, a raposa saiu em silêncio e foi indo embora. E o lenhador se
pôs a repreendê-la, pois ela, salva por ele, não lhe dera nem uma palavra de
gratidão. A raposa respondeu: “Mas eu seria grata, se os gestos de sua mão
fossem condizentes com suas palavras.”
(Fábulas
completas, 2013.)
QUESTÃO 13 - A moral mais apropriada para fechar a
fábula seria:
(A) Esta fábula
pode ser dita a propósito de homens desventurados que, quando estão em
situações embaraçosas, rezam para encontrar uma saída, mas assim que encontram procuram
evitá-las.
(B) Desta fábula
pode servir-se uma pessoa a propósito daqueles homens que nitidamente proclamam
ações nobres, mas na prática realizam atos vis.
(C) Esta fábula
mostra que os homens desatentos prestam atenção nas coisas de que esperam tirar
proveito, mas permanecem apáticos em relação àquelas que não lhes agradam.
(D) Assim, alguns
homens se entregam a tarefas arriscadas, na esperança de obter ganhos, mas se
arruínam antes mesmo de chegar perto do que almejam.
(E) Desta fábula
pode servir-se uma pessoa a propósito de um homem frouxo que reclama de ínfimas
desgraças, enquanto ela própria suporta, sem dificuldade, desgraças enormes.
QUESTÃO 14 - “Entretanto, como eles não prestaram
atenção nos seus gestos, deram crédito às suas palavras.” Em relação à
oração que a sucede, a oração destacada tem sentido de
(A) causa. (B)
conclusão. (C) proporção. (D) consequência. (E) comparação.
QUESTÃO 15 - Os trechos “Ele sugeriu que ela entrasse
em sua cabana” e “vieram os caçadores e perguntaram ao lenhador se ele tinha visto
uma raposa” foram construídos em discurso indireto. Ao se transpor tais trechos
para o discurso direto, o verbo “entrasse” e a locução verbal “tinha visto”
assumem, respectivamente, as seguintes formas:
(A) “entrai” e
“vira”.
(B) “entrou” e
“viu”.
(C) “entre” e
“vira”.
(D) “entre” e
“viu”.
(E) “entrai” e
“viu”.
QUESTÃO 16 - Caracterizou-o sempre um sincero amor
pelas coisas de sua terra, pela sua gente, e se existe obra que possa ser chamada
de brasileira, é a dele. Se seus assuntos eram o homem e a terra do Brasil,
apanhados no Norte, no Sul, no Centro, a forma por que os explorava era também
brasileira, pela sintaxe que empregava e pelos modismos que introduzia. O
Brasil do campo e o das cidades está presente em sua obra, assim como o homem
da sociedade, o homem da rua e o trabalhador rural. Abarcou os aspectos mais
variados da nossa sensibilidade e da nossa formação, constituindo sua obra um
painel a que nada falta, inclusive o índio, que nela tem participação
considerável.
(José Paulo Paes e
Massaud Moisés (orgs). Pequeno dicionário de literatura brasileira,
1980. Adaptado.)
Tal comentário
refere-se ao escritor
(A) Machado de
Assis.
(B) Manuel Antônio
de Almeida.
(C) José de
Alencar.
(D) Aluísio
Azevedo.
(E) Guimarães
Rosa.
Leia o trecho do
conto “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis (1839-1908), para responder às
questões de 17 a 21.
Uma
vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula¹
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos
seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites
mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a
noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam
as velhas beatas.
–
Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio
da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me
gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome,
inventado para meu desdouro², fazei dele um troféu e um lábaro3, e eu vos darei
tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era
assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,
congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram,
o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de
um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era
umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava
ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as
naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e
assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com
a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada4. A ira tinha a
melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:
“Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu”... [...] Pela sua parte o
Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha
do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o
fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era
a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que
chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As
turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes
de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo
amar as perversas e detestar as sãs.
Nada
mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía:
Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos;
não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a
todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e
profunda, foi a da venalidade5. Um casuísta6 do tempo chegou a confessar que
era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um
direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi,
o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal,
mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua
opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas,
porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no
absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não
pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem
anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se
nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o
Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária;
depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade
e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
(Contos: uma
antologia, 1998.)
1 cogula: espécie
de túnica larga, sem mangas, usada por certos
religiosos.
2 desdouro:
descrédito, desonra.
3 lábaro:
estandarte, bandeira.
4 esgalgado:
comprido e estreito.
5 venalidade:
condição ou qualidade do que pode ser vendido.
6 casuísta: pessoa
que pratica o casuísmo (argumento fundamentado em
raciocínio
enganador ou falso).
QUESTÃO 17 - “Ele prometia aos seus discípulos e fiéis
as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos.” (1o
parágrafo) Tal promessa do Diabo constitui, sobretudo, uma inversão da seguinte
máxima cristã:
(A) “Amai-vos uns
aos outros.”
(B) “Aquele que
não tiver pecado, atire a primeira pedra.”
(C) “Não façais da
casa do meu Pai casa de comércio.”
(D) “Meu reino não
é deste mundo.”
(E) “Se alguém te
bater na face direita, oferece-lhe também a outra face.”
QUESTÃO 18 - Estão empregados em sentido figurado os
termos destacados nos seguintes trechos:
(A) “a que podia ser
na boca de um espírito de negação” (3o parágrafo) e “sem o furor de
Aquiles, não haveria a Ilíada” (4o parágrafo).
(B) “incutia-lhes,
a grandes golpes de eloquência” (5o parágrafo) e “a definição que
ele dava da fraude” (6o parágrafo).
(C) “retificar a noção
que os homens tinham dele” (1o parágrafo) e “congregar, em suma, as
multidões ao pé de si” (3o parágrafo).
(D) “Sou o vosso
verdadeiro pai.” (2o parágrafo) e “as virtudes aceitas deviam ser
substituídas por outras” (4o parágrafo)
(E) “uma voz que
reboava nas entranhas do século” (1o parágrafo) e “a que se deu aquele
nome para arredá-lo do coração dos homens” (2o parágrafo).
QUESTÃO 19 - No último parágrafo, o principal recurso
retórico mobilizado pelo Diabo em sua argumentação a respeito da venalidade é
(A) a repetição. (B)
a interrogação. (C) a citação. (D) a hesitação. (E) a periodização.
QUESTÃO 20 - As palavras do texto cujos prefixos
traduzem, respectivamente, ideia de repetição e ideia de negação são
(A) “reabilitadas”
(4o parágrafo) e “infinitas” (4o parágrafo).
(B) “desmentir”
(1o parágrafo) e “indiferentes” (3o parágrafo).
(C) “deslavada”
(3o parágrafo) e “preconceito” (6o parágrafo).
(D)
“extraordinária” (1o parágrafo) e “desdouro” (2o parágrafo).
(E) “reboava” (1o
parágrafo) e “perversas” (5o parágrafo).
QUESTÃO 21 - “Quanto à inveja, pregou friamente que era
a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude
preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.” (4o
parágrafo) Os termos em destaque constituem, respectivamente,
(A) um pronome e
um artigo.
(B) uma conjunção
e um artigo.
(C) um artigo e
uma preposição.
(D) um pronome e
uma preposição.
(E) um artigo e
uma conjunção.
Leia o excerto do
livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono de Jonathan Crary para
responder às questões de 22 a 24.
No
fim dos anos 1990, um consórcio espacial russo-europeu anunciou que construiria
e lançaria satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra. O esquema
previa colocar em órbita uma cadeia de satélites, sincronizados com o Sol, a
uma altitude de 1 700 quilômetros, cada um deles equipado com refletores
parabólicos retráteis, da espessura de uma folha de papel. Quando completamente
abertos, cada satélite-espelho, com duzentos metros de diâmetro, teria a capacidade
de iluminar uma área da Terra de 25 quilômetros quadrados, com uma luminosidade
quase cem vezes maior do que a da Lua. Em princípio, o projeto visava fornecer
iluminação para a exploração industrial de recursos naturais em regiões remotas
com longas noites polares, na Sibéria e no leste da Rússia, permitindo
atividade ao ar livre, noite e dia. Mas o consórcio acabou expandindo seus
planos para a possibilidade de oferecer iluminação noturna a regiões
metropolitanas inteiras. Calculando que se reduziriam os custos de energia da
iluminação elétrica, o slogan da empresa era “Luz do dia a noite toda”.
A
oposição ao projeto surgiu de imediato e de diversas frentes. Astrônomos
temeram os efeitos nefastos da observação espacial a partir da Terra.
Cientistas e ambientalistas apontaram consequências fisiológicas prejudiciais
tanto aos animais quanto aos humanos, uma vez que a ausência de alternância
regular entre dia e noite interromperia vários padrões metabólicos, inclusive o
sono. Associações culturais e humanitárias também protestaram, alegando que o
céu noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem direito, e que
desfrutar da escuridão da noite e observar as estrelas é um direito humano
básico que nenhuma empresa pode eliminar. De qualquer modo, direito ou
privilégio, ele já está sendo violado para mais da metade da população do planeta,
em cidades que estão permanentemente envoltas na penumbra da poluição e na
intensa iluminação.
Defensores
do projeto, todavia, afirmaram que tal tecnologia diminuiria o uso noturno de
eletricidade e que a perda da noite e de sua escuridão seria um preço razoável,
considerando-se a redução do consumo global de energia. Seja como for, esse
empreendimento, ao fim inviável, ilustra o imaginário contemporâneo, para o
qual um estado de iluminação contínua é inseparável da ininterrupta operação de
troca e circulação globais. Em seus excessos empresariais, o projeto é uma
expressão hiperbólica de uma intolerância institucional a tudo que obscureça ou
impeça uma situação de visibilidade instrumentalizada e constante.
(24/7:
capitalismo tardio e os fins do sono, 2014. Adaptado.)
QUESTÃO 22 - Em relação ao projeto, a postura do autor
é de
(A) indiferença. (B)
imparcialidade. (C) neutralidade. (D) apoio. (E) oposição.
QUESTÃO 23 - Considerando as pretensões do projeto, o
slogan do consórcio “Luz do dia a noite toda” mostra-se
(A) absurdo. (B)
contraditório. (C) ambíguo. (D) apropriado. (E) irônico.
QUESTÃO 24 - Leia a seguinte sinopse do livro 24/7:
capitalismo tardio e os
fins do sono:
O
livro faz um panorama vertiginoso de um mundo cuja lógica não se prende mais a
limites de tempo e espaço, funcionando ininterruptamente sob uma lógica para a
qual o próprio ser humano é um empecilho. Para o autor, nossa necessidade de
repouso e sono é a última fronteira ainda não ultrapassada pela lógica da
mercadoria. O capitalismo, no entanto, já se movimenta no sentido de colonizar
mais essa esfera da vida e hoje financia extensamente pesquisas científicas que
buscam a fórmula para criar o “homem sem sono”, capaz de trabalhar e consumir
sob a lógica 24/7. Ainda assim, o livro recupera toda uma tradição da cultura
ocidental que sempre viu no sono e no sonho possibilidades utópicas. 24/7 é
um dos diagnósticos mais agudos do mundo contemporâneo.
Com base na
leitura do excerto e da sinopse acima, é correto concluir que os números
“24/7”, que integram o título do livro, indicam
(A) valor
monetário.
(B) tempo
cronológico.
(C) marco
histórico.
(D) delimitação espacial.
(E) código
secreto.
QUESTÃO 25 - Leia um trecho do “Manifesto do Futurismo”
publicado por Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) no ano de 1909.
Nós
cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela
revolta; as marés multicoloridas e polifônicas das revoluções nas capitais
modernas; a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros sob suas luas elétricas;
as estações glutonas comedoras de serpentes que fumam; as usinas suspensas nas
nuvens pelos barbantes de suas fumaças; os navios aventureiros farejando o
horizonte; as locomotivas de grande peito, que escoucinham os trilhos, como
enormes cavalos de aço freados por longos tubos, e o voo deslizante dos
aeroplanos, cuja hélice tem os estalos da bandeira e os aplausos da multidão
entusiasta.
(Apud Gilberto
Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, 1992.
Adaptado.)
Em consonância com
este preceito do Futurismo estão os seguintes versos, extraídos da produção
poética de Fernando Pessoa (1888-1935):
(A) Nas cidades a
vida é mais pequena
Que aqui na minha
casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as
grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o
horizonte, empurram o nosso olhar para
[longe de todo o
céu,
Tornam-nos
pequenos porque nos tiram o que os nossos
[olhos nos podem
dar,
E tornam-nos
pobres porque a nossa única riqueza é ver.
(B) Ontem à tarde
um homem das cidades
Falava à porta da
estalagem.
Falava comigo
também.
Falava da justiça
e da luta para haver justiça
E dos operários
que sofrem,
E do trabalho
constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que
só têm costas para isso.
E, olhando para
mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com
agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele
sentia, e a compaixão
Que ele dizia que
sentia.
(C) Amemo-nos
tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos,
trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale
estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o
rio e vendo-o.
Colhamos flores,
pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o
seu perfume suavize o momento –
Este momento em
que sossegadamente não cremos em
[nada,
Pagãos inocentes
da decadência.
(D) Levando a
bordo El-Rei dom Sebastião,
E erguendo, como
um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última
nau, ao sol aziago
Erma, e entre
choros de ânsia e de pressago
Mistério.
Não voltou mais. A
que ilha indescoberta
Aportou? Voltará
da sorte incerta
Que teve?
(E) Amo-vos a
todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos
carnivoramente,
Pervertidamente e
enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas
grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas
modernas,
Ó minhas
contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema
imediato do Universo!
Nova Revelação
metálica e dinâmica de Deus!
QUESTÃO 26 - Nesta obra, o autor optou por uma situação
narrativa que se define pelo movimento de aproximação e distanciamento da
substância sensível da realidade retratada, como forma de solidarizar-se com
seus personagens e, ao mesmo tempo, sustentar uma posição crítica rigorosa ante
a “desgraça irremediável que os açoita”. Relativiza, assim, a onisciência da terceira
pessoa e reconstitui, pela via literária, o hiato entre seu saber de
intelectual e a indigência dos retirantes – alteridade que buscou compreender
pelo exercício artístico da palavra enxuta e medida. Com a cautela de quem não
se permite explicitar significados ou avançar conclusões, o narrador condiciona
a narração à expectativa dos personagens, através do uso intensivo do discurso
indireto livre, que dá forma à sondagem interior pretendida e singulariza os
destinos representados.
(Wander Melo
Miranda. “Texto introdutório”. In: Silviano Santiago (org). Intérpretes
do Brasil, vol 2, 2000. Adaptado.)
Tal comentário
aplica-se à obra
(A) Morte e
vida severina, de João Cabral de Melo Neto.
(B) Os sertões,
de Euclides da Cunha.
(C) Vidas secas,
de Graciliano Ramos.
(D) Capitães da
Areia, de Jorge Amado.
(E) Grande
sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
Para responder às
questões de 27 a 29, leia o poema “Dissolução”, de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), que integra o livro Claro enigma,
publicado originalmenteem 1951.
Escurece, e não me
seduz
tatear sequer uma
lâmpada.
Pois que aprouve1
ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito
que brote
uma ordem outra de
seres
e coisas não
figuradas.
Braços cruzados.
Vazio de quanto
amávamos,
mais vasto é o
céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?
E nem destaco
minha pele
da confluente
escuridão.
Um fim unânime
concentra-se
e pousa no ar.
Hesitando.
E aquele agressivo
espírito
que o dia carreia2
consigo,
já não oprime.
Assim a paz,
destroçada.
Vai durar mil
anos, ou
extinguir-se na
cor do galo?
Esta rosa é
definitiva,
ainda que pobre.
Imaginação, falsa
demente,
já te desprezo. E
tu, palavra.
No mundo, perene
trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo,
és suave.
(Claro enigma,
2012.)
1 aprazer: causar
ou sentir prazer; contentar(-se).
2 carrear:
carregar.
QUESTÃO 27 - Constituem termos que reforçam o tom
pessimista do poema:
(A) “noite”,
“vazio” e “fim”.
(B) “dia”, “pele”
e “cor”.
(C) “coisas”,
“vácuo” e “imaginação”.
(D) “lâmpada”,
“céu” e “escuridão”.
(E) “ordem”,
“povoações” e “espírito”.
QUESTÃO 28 - Personificação: recurso expressivo que
consiste em atribuir propriedades humanas a uma coisa, a um ser inanimado ou
abstrato.
(Dicionário
Porto Editora da Língua Portuguesa. www.infopedia.pt. Adaptado.)
Verifica-se a
ocorrência desse recurso no seguinte verso:
(A) “Vazio de
quanto amávamos,” (3a estrofe)
(B) “E nem destaco
minha pele” (4a estrofe)
(C) “Esta rosa é
definitiva,” (6a estrofe)
(D) “Pois que aprouve
ao dia findar,” (1a estrofe)
(E) “No mundo,
perene trânsito,” (7a estrofe)
QUESTÃO 29 - O pronome “te”, empregado no segundo verso
da última estrofe, refere-se a
(A) “imaginação”. (B)
“palavra”. (C) “rosa”. (D) “mundo”. (E) “corpo”.
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